exercício dos contrários



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HÁBITOS CONTRA A CORRENTE

O cais estava a preto e branco. Visto de uma nuvem parecia coberto de pedras de calçada, visto das ondas do rio parecia coberto por peças de um jogo de damas sem regras. De perto descobriam-se centenas de freiras amontoadas em lágrimas. Olhavam para um barco pronto a partir e os seus olhos, a ondular, perguntavam se, todas juntas, teriam força para ser âncora.
Com as botas pretas poisadas no cais e o fato azul e branco suspenso sobre a água, um marinheiro fazia os últimos preparativos para que a viagem fosse de paz. Com uma mão apoiava-se na proa e com a outra segurava uma cruz feita de cordas com que batia 3 vezes no casco. Uma pelo Pai, outra pelo Filho e outra pelo Espírito Santo - enquanto se interrogava do porquê de um gesto habitualmente partido em quatro para representar uma unidade sempre partida em três. Desejou compaixão cristã a bordo e que fossem capazes de andar sobre as águas como Jesus. Era tudo o que a sua fé da escola primária com catequese obrigatória lhe permitia pedir a Deus no céu e era muito mais do que aquilo que a sua vida sempre no mar lhe permitia pedir a quem quer que fosse na terra.
No convés, dezenas de padres arregaçavam as mangas da batina, prendendo-as entre o cotovelo e os bícepes adormecidos, alargavam o colarinho romano respirando com uma liberdade que já não era sua e preparavam-se para dar início aos trabalhos a bordo. Olharam para as velas caídas no chão, ajoelharam-se perto delas mas não lhes tocaram e, sem se mexerem, içaram as almas enquanto esperavam que o barco partisse. Sem distinguirem a proa da popa o destino era o que Deus quisesse.
 As freiras no cais choravam e benziam-se. Sabiam que, mesmo sem terem sido noivas, seriam viúvas dos homens e de Deus ao mesmo tempo. Iam deixar de ter quem as salvasse nos arranjos diários do convento e do espírito – e principalmente das rasteiras do coração e do corpo a que a fé as obrigava a chamar provações da alma. Os seus pensamentos tombavam de um lado para o outro da cabeça ao ritmo da mão que dançava triste com o lenço branco. Era o adeus de Deus.
Mas o barco não partia. As lágrimas delas demoravam mais a cair e já não deslizavam pela cara, prendiam-se no rasto das anteriores e o desgosto tornava-se peganhento. Tudo parecia suspenso, à espera de um milagre, enquanto do convés mergulhavam conversas soltas:
    -       Tenho fé que o vento vai mudar.
-    Ainda nem saímos do rio e eu já só penso  em Moisés para separar os mares.
Os padres sabiam que Deus ia olhar por eles na viagem e isso abrandava o sopro do medo. Mas as freiras eram mais, sofriam mais e rezavam com mais força. E assim o Pai pregou uma partida aos filhos não os deixando partir. Mandou descer todo o nevoeiro sobre o rio e soou a sirene. Os padres abandonaram o barco, as freiras as lágrimas e o marinheiro há muito que tinha abandonado o cais levando a cruz – a corda ainda podia ser reutilizada - mas deixando lá Deus. Talvez fosse a pressa de chegar ao vazio que tinha pela frente que o impediu de perceber o que deixava para trás. Ou talvez fosse só porque, pelas leis dos homens,  Ele não cabia no saco das riscas azuis e brancas. E então, como se não O vissem nem sentissem por perto, todas as feiras puseram baton.

texto infantil // ponto de partida: a Emilia muda de escola, não gosta e depois descobre que afinal a mudança foi boa.



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A escola da Emilia tem um grande pátio com um campo que às vezes é de futebol, às vezes de basket e às vezes é só um sítio para conversar a apanhar sol. A escola da Emilia tem um grande muro onde todos os miúdos se sentam em cima e ficam a abanar os pés para verem as cores das meias uns dos outros ( e também quem pisou pastilha elástica). A escola da Emilia tem os seus melhores amigos: a Rosa que tem tranças ruivas e fala muito depressa, o Zé que tem aparelho nos dentes e tropeça nas palavras e a Maria que parece não ter nada de especial mas que vive na porta ao lado da Emília e acabam por andar sempre juntas porque a proximidade é vizinha da amizade. A escola da Emilia tem tudo o que ela imaginou numa escola. Ou melhor, tinha tudo porque já não é a escola da Emilia.
O pai da Emilia é engenheiro. Constrói pontes que atravessam os rios. Como naquela cidade o rio era curto e estreito e já era atravessado por 3 pontes - uma construída pelo bisavô da Emília, outra pelo avô e outra pelo pai - não havia mais espaço para mais pontes e o pai da Emília decidiu que deviam mudar de morada.
- Para onde? perguntou ela.
- Para uma cidade que tenha mais rios e que por isso precise de mais pontes - respondeu o pai.
A Emilia pensou, pensou e quando achou que tinha pensado tudo pensou ainda mais um bocado. E perguntou outra vez:
- Para onde?
- Tinha pensado numa ilha para fazer muitas pontes que a ligassem a outras ilhas e talvez a um continente. Mas depois tive uma ideia melhor e já sei para onde vamos.
- Para onde? voltou a perguntar a Emilia já a franzir a testa que estava quase sempre tapada pela sua franja com caracóis castanhos escuros.
- Vamos para Veneza - disse o pai enquanto se levantava do sofá.- Vamos para Veneza agora mesmo!
O pai agarrou numa mala e depois noutra e noutra e pôs tudo lá dentro. As malas da Emília continuavam vazias para quem quisesse ver. Só estavam cheias de dúvidas que não se viam mas que ela gritava para o quarto do pai:
- Sabes que eu não falo italiano?
- A Maria e a porta ao lado também vão para Veneza?
- E o Zé e a Rosa?
- Achas que lá também há sol no campo que às vezes é de futebol, às vezes de basket e às vezes é só um sítio para conversar?
- Se a mãe fosse viva também íamos viver para lá?
O pai apareceu no quarto da Emilia. Ela estava sentada no chão a olhar para as malas vazias, quase tão vazias quanto ela. O pai sentou-se no chão e disse:
- Vou responder a cada uma das tuas perguntas: Sei que não falas italiano e eu também não mas aprendemos num instante - sabemos dizer pizza e isso já é meio caminho andado para sermos felizes!
A Emilia piscou o olho a responder ao piscar de olho do pai, como fazia sempre, apesar de ainda não estar nada convencida. O pai continuou:
- A Maria e a sua porta ficam cá. Em Veneza encontrarás outras Marias e outras portas ao lado sem nunca te esqueceres desta. Mandas cartas, telefonas e ela até nos pode ir lá visitar! O mesmo acontece com o Zé e a Rosa.
A Emília estava muda de olhos muito abertos à espera que o pai continuasse. E o pai continuou:
- Tenho a certeza que vais ter dias de sol no campo de desporto da escola e dias de chuva também mas o mais importante é que vais ter amigos novos e é sempre bom ter mais e mais amigos, não é?
Agora a Emília teve de concordar. Imaginou que ia ver meias de cores nunca antes vistas penduradas nas pernas que abanavam num muro da escola. Faltava a resposta mais difícil à pergunta mais difícil.
- Se a tua mãe ainda fosse viva íamos os 3 porque as pontes mais importantes que eu posso construir são entre nós, para estarmos sempre juntos. Não posso fazer uma ponte até ao céu mas sei que a tua mãe lá de cima vem connosco até Veneza ou até bem mais longe.
A Emilia levantou-se, abraçou o pai e pôs toda a sua roupa e livros na mala. Hoje em dia fala tão bem italiano como português, tem vários amigos italianos e um namorado também, a Rosa, o Zé e a Maria estão lá a fazer Erasmus e o pai da Emília é responsável pela modernização das pontes da cidade.
Pelas pontes do pai, a Emília percebeu a importância de ligar lugares e pessoas, o aqui e o ali, o tu e o eu, e decidiu ser escritora. Era esta a sua maneira de ligar a realidade e o sonho, as palavras e os desenhos, as ideias e as pessoas. Porque cada um de nós constrói pontes à sua maneira, as pontes da Emilia são feitas de letras como estas.

texto infantil com os géneros todos: erótico, viagens, fantástico, policial, humor e experimental



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A Verónica sabia tudo sobre comboios. Sabia exactamente onde começavam as linhas que iam dar a fora daqui e a que horas partiam os comboios para muito longe. Todos os dias enchia e esvaziava a mochila como se criasse a companhia perfeita para partir. Depois olhava-se ao espelho e percebia que a mochila de inter-rail do seu irmão mais velho continuava a ser maior do que ela. E voltava a guardá-la na parte de cima do armário do corredor.
Aos 11 anos e meio, a Verónica sabia muito bem o que queria da vida. Ser turista. E se não podia sair do país nem da cidade era turista em Lisboa. Tirava fotografias junto à torre de belém, passava os sábados no autocarro vermelho que leva e traz turistas, comia croissants na Benard e fingia que bebia cafés na Brasileira.
Num dos seus dias de passeio encontrou um rapaz muito engraçado. Não era bonito nem contava anedotas mas era engraçado porque tinha comido os P e não conseguia fazê-los sair outra vez pela boca: nem com um susto, como a Verónica tentou várias vezes.
- Sabes o que é que eu almocei hoje? Bifes daquele animal cor de rosa que vive no meio da lama!
- Bifes de porco, disse a Verónica.
Ele agradeceu, tentou roubar o P da frase dela mas não conseguiu. Chamava-se Pedro mas como não podia dizer o P que ainda dava voltas na barriga dizia que era o João. A partir desse dia nunca mais se largaram e todos os fins de semana eram um par de turistas na sua própria cidade.
Um dia, quando passeavam perto do rio viram um casal de namorados. Eles estavam tão perto tão perto um do outro como eles nunca tinham visto. Estavam ainda mais juntos do que as pessoas no autocarro logo de manhã. E deviam ouvir mal porque falavam também com as bocas muito perto. Era o que a Verónica achava. Mas o João que era Pedro tinha outra ideia:
- Eles estão a namorar.
- Como é que sabes isso? perguntou a Verónica.
- Vamos segui-los - disse o João que era Pedro sem conseguir. - Se ele lhe der a mão, oferecer flores, usar o braço à volta daquilo que está em baixo do queixo e segura a cabeça e tiver os olhos a brilhar temos todas as coisas que os detectives têm quando querem ter a certeza de uma coisa.
- As pistas e as provas, disse a Verónica.
- Isso, disse o João que não sabia ser Pedro.
E começaram a segui-los. Pelo caminho viram pegadas gigantes nas paredes dos prédios mas isso não tinha interesse nenhum comparado com duas pessoas que se colavam e descolavam quando lhes apetecia. Quando o casal chegou à estação de comboios foi cada um para seu lado. Mas antes ela disse:
- Prometes pensar sempre em mim Paulo?
E ele respondeu:
- Prometo Palmira. Pedes o que não precisas de pedir, pequenina.
E o João que era Pedro corava. Achava que nunca ia conseguir fazer uma declaração de amor à Verónica porque isso parecia usar muitos Ps. Até que encontrou a frase certa:
- Queres namorar comigo?
A Verónica deu-lhe a mão e respondeu:
- Claro que sim.
Enquanto os dias passavam sonhavam com todos os lugares que iam visitar quando crescessem. Mas o João que era Pedro nunca se atreveu a dizer que queria muito ir à Polónia, ao Peru, à Polinésia ou à Patagónia. Mas não era preciso porque a Verónica sabia que sonhavam os dois com as mesmas coisas. Nos anos dele deu-lhe uma caixa cheia de Ps de papel e prometeu que quando fizessem a viagem era ela que ia à bilheteira e pedia o passe.


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A floresta acordou com o uivo a meio da noite.
Todos - a coruja e o coelho, a gazela e o tigre, a cobra e o rato, o macaco e o crocodilo -, com frio e medo, saíram para dizer: - Que barulho medonho! 
Logo a seguir, ouviram outro uivo, maior, mais alto, mais assustador, que o primeiro.
O elefante, sábio da floresta, veio devagar mas vinha preocupado: é o lobo.
Agarrou-se a coruja ao coelho, a gazela ao tigre, a cobra ao rato e o macaco ao crocodilo: - Que medo! O lobo quer comer-nos durante a noite! 
- Está lá longe, não se preocupem. Vou falar com ele logo de manhã.
-Ufa – suspiraram e voltaram a dormir.
Passaram dias e nuvens no céu lá em cima. Durante a Primavera saltaram e dançaram; nadaram e correram o Verão e na floresta, grande como do chão ao céu, nunca mais ouviu o uivo.
- Foi-se embora o lobo Elefante? - a mãe coelho queria saber.
- Está lá longe, não te preocupes.
O Verão parecia que ia ser para sempre até que, a meio da noite, ouviram o uivo de novo.
- Que medo...! - e, de novo, iam a sair para perguntar quando viram, no meio da floresta, o lobo.
Que fazes aqui? - perguntou o elefante
Venho fazer um aviso. - disse o lobo – Estão a começar a cair as folhas das árvores, perto do rio, do outro lado da floresta. Vai começar o Outono.
Mas ainda está tanto calor e as folhas estão verdes, temos o que comer por todo o lado. - o elefante não queria acreditar.
Mas é verdade o que te digo e devem começar a guardar para o Inverno. - e foi-se embora o lobo.
Os dias passaram depressa e o Outono apareceu mais depressa ainda. Na floresta as árvores já eram amarelas, castanhas e vermelhas. No Inverno ficou toda coberta de neve e ao rato e ao macaco faltava o jantar.
- Elefante! Precisamos de comer mas morremos se formos por aí, no meio da neve!
- Porque não pensaram nisso antes, enquanto era Verão?
- Não sabíamos que ia ser Inverno tão depressa! - chorava devagarinho o rato.
E o elefante lembrou-se: - O lobo avisou...
De todos, só o lobo conseguia andar depressa e sem se cansar, pela neve fria do Inverno. De todos, era o único que sabia andar de dia e de noite sem se perder. E foi por isso que o elefante lhe foi falar.
Dois dias depois, acordaram com um banquete no meio da floresta branca e fria. O lobo, parado e sem uivar, trouxera provisões para o resto do Inverno.
Primeiro parados e depois devagar, a coruja e o coelho, a gazela e o tigre, a cobra e o rato, o macaco e o crocodilo, saudaram o lobo pelo nome, agradecendo-lhe.
Desde esse Inverno que cada uivo que ouvem é um alivio e sorriem enquanto dormem, na floresta grande como do chão ao céu.







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    Na noite de seis de Fevereiro, morreu Antonino da Silva Trigueiro. Uma morte natural disse a autópsia.     Uma morte de surpresa disse metade da vila. Uma morte assassinada disse a Lurdes.
    No dia antes, Antonino passeava, saudável e com boa tez, pela alameda mais folgada da vila de Aguada de Baixo. Todos o saudavam – na tasca, na montra, na loja –, iam cães no seu encalço, felizes de um afago, enquanto ia a caminho da fazenda. Tinha a sua família, desde o bisavô, dezassete hectares de solo fecundo, cobiçado em Aguada de Baixo e em metade de Aguada de Cima.
    A jorna era a mesma todo o ano: de manhã antes do sol, o percurso pela alameda central da terra, os acenos e as saudações, até ao terreno. Passava lá o resto do tempo até escurecer. Da terra, antes do sustento e em vez da fortuna, apanhava dores de costas, unhas escuras e pele queimada. Mas era aquele o seu lugar melhor. O lugar onde era um homem melhor.
   Quando era hora de voltar, vinha pela alameda acima, com igual vontade. Vinha de volta para ela.
    Lurdes sabia ficar invisível: era uma mulher pequenina, cabia em lugares que mais ninguém arriscava; ás vezes ficava sossegada, parada e sem som, só a ouvir e a ver. Ás vezes e as vezes que ela queria, desaparecia. Regressava no lusco-fusco, para receber o seu homem, com a sopa aquecida na mesa cheia. Viviam de sol em sol, sem sobressaltos e no meio de acenos e saudações.
    A terra lavrada, de sol a sol, por aquele homem, nunca esteve à venda. Nunca o avô do avô, o avô ou ele, encontraram razão para a dar a troco de nada. Choveram, durante quase um século, propostas, umas honestas outras obscenas, para que se desamarrassem daquele pedaço de chão. Nem uma delas teve o sucesso que procurava.
    Em todas as ofertas, a do Joaquim da Vereda era mais uma – a mais esmagadora, repetida, ameaçadora e vigarista. Todos os dias a saudação do Joaquim era a mesma à ida e à volta: é hoje que te desfazes do teu caixão? Se calhar matou-o; jamais se soube.
     Secou o terreno depois que morreu em Fevereiro e sumiu, de vez e com ele, Lurdes.



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De Bissau a Bafatá, demorámos dois dias em caminhos feitos pela força do que sobre eles passou. À esquerda, verde. À direita, verde. Nunca choveu e, no entanto, o meu humor era de mau tempo. A roupa colava-se-me ao corpo. Sentia-me suada e suja. Uma vez, passei por cinco mulheres a transportar água. Não me apeteceu parar para tirar fotografias. Só queria chegar para poder voltar. Na manhã do terceiro dia, de partida para Gabu, os pneus do jipe foram furados. Era uma emboscada.
            Durante vários minutos, estive com a cara espalmada contra a janela do jipe. Reparei no embaciamento que cada expiração criava. O bandido puxou-me a cabeça para trás pela nuca.
            – Olha estes cabelos tão bonitinhos.
            Senti o frio de uma lâmina encostada ao pescoço. Vi o reluzir do metal. Na boca, o mesmo sabor a sangue de há 7 anos, no rio Mara, Quénia, onde quase morri afogada. Trinco a língua quando fico nervosa.
            – Sabe...
            Articulava cada som até à sua exaustão, como se eu fosse a sua professora de Português e ele me quisesse impressionar.
            – A minha vontade hoje era foder uma branquinha como você.
            E diminuiu a distância entre mim e a lâmina, esfregando o sexo erecto na minha perna. Eu observava o vermelho da terra e perguntava-me se era do meu sangue. Comparava o verde aberto da vegetação e o verde seco das calças do homem, não percebendo como um podia camuflar alguém no outro. As nuvens escuras, que minutos antes pairavam no horizonte, pareciam querer cair inteiras sobre mim. Só pensava na parangona: «Violada à chuva e encontrada morta na lama».
            Maldisse o minuto em que aceitei a reportagem no interior da Guiné-Bissau.
            – Não te preocupes com nada – reconfortou-me o meu chefe. – Vais com a equipa, todos homens, gajos experientes. O jipe é do melhor, branquinho, todo luzente ainda, super confortável.
            – Mas, João...
            – Além disso, é só uma reportagem sobre aldeias perdidas, tipo National Geographic, ‘tás a ver? Ninguém se vai meter convosco, no way.
            Filho da puta.
            Filhos da puta.

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Tema: Uma viagem


Viajar até ao fim do mundo... Na minha memória sempre registei Ushuaia como muito perto de viver a sensação de ir até ao fim do mundo...tão longe e tão só, lá em baixo, onde já não há ninguém...Dá-me uma perspectiva,uma ideia disso.Finisterra...quase se podia chamar assim
Parti de Buenos Aires, era inevitável. Cidade europeia, meia italiana, cheia de cores e de musicalidade: o abraço numa milonga para despedida e inspiração.
- A camionete parte daqui ?
- No lo entiendo...disse o viajante de mochila às costas.
-The bus for Ushuaia?
Agora percebeu...Yes, respondeu, mas num tom que não era inglês.
Bem há mais alguém..
Chega mais um casal, mas sem mochilas, devem ser argentinos, bagagem de sacos diversos..
O tempo estava cinzento, escuro ao longe. Iriamos ter vários dias de
percurso: levava alguna mantimentos, agasalho e água, o imprescindível.
O ruido do motor era variável, provocava-me uma inquietação intermitente: quando eu deixava de estar tão fascinada pelo sem fim da paisagem em todas as direcções e o meu espírito entrava de novo na camionete e voltava a ouvir aquele som roufenho. A chuva começou a cair com uma violência crescente mas a camionete com o seu ronco esquisito parecia não se ralar com isso e o motorista esse então assobiava de vez em quando... Nisto aparece à nossa frente um jeep parado na berma : empanado! Os ocupantes, que nem uns pintos, tinham o capot aberto e estavam com um ar preocupado. Nestas terras do fim do mundo não se pode passar sem falar: o motorsta interroga, -Que passa?..-No lo sé...
Salta fora: água,água, encharca logo, já são três a analisar...
SOS, cabo atado e segue o jeep atrelado à camionete que ronca e resfolega, mas é como um rinoceronte: forte e feio e sempre andando.
Os passageiros do jeep passaram para a camionete, arrastava-se o peso iamos mais devagar.

Passaram-se horas, e dias e noites, sempre o horizonte longe e a estrada sem fim, nunca fiz uma viagem tão desligada de tudo...Através da Sibéria havia de vez em quando uma casa, mesmo de madeira apodrecida, ou povoados pequenos a quebrar a pouca imaginação da paisagem. Aqui é muito mais difícil encontrar gente, então na última parte da viagem.
Quando chego ao fim, corpo bem amassado a desejar um chão qualquer onde estender o saco cama, embora haja casas e se fala uma lingua que até se entende, pensei: quanto me faltará para chegar mesmo ao fim do mundo? .

MJ Lobo

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O CABELEIREIRO DOS CARECAS

 

Eh pá, conseguiste arranjar emprego?

É verdade... a pentear carecas...

Ahh?Tretas...

Sim, sim, não imaginas como eles gostam que se lhes aproveitem os poucos cabelos que têm ou se lhes trate da cabeça como se tivessem cabelos...Olha lá ..não tratas das mãos e dos pés sem terem cabelos? Porqué que não hás-de tratar da cabeça? Primeiro a massagem do couro cabeludo , mesmo que seja só couro, sem ser cabeludo, é estimulante para a circulação cerebral...Oh pá até aumenta a nossa inteligência, nunca ouviste dizer? Num bom cabeleireiro vai sempre uma boa massagem com a ponta dos dedos. Através dos cabelos a estimular a circulação...A gente continua a ter circulação debaixo da pele  mesmo sem ter cabelos...Não pensaste nisso?

E quando os cabelos são poucochinhos aproveitá-los bem, a virá-los pra cima ou pra um lado só.. Tambem podes ajudar a dar um jeito no chinó ou peruca, isso são serviços acessórios, mas também dá...

Olha há muito mais carecas a  quererem ser valorizados e serem atendidos como clientes exclusivos do que aquilo que tu julgas...Ser careca tambem dá estatuto...Tambem os que são rapados podem ser atendidos mas isso não é careca legítimo...Posso atender mas tem que esperar sem prioridade que isto ou são carecas com certificado  ou se estão em regime transitório que é o mesmo que  faz de conta  não é cá a mesma coisa...Prontos , é assim e não há crise...

 


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The Evolution of Storytelling from Maria Popova on Vimeo.



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Escolhi ir durante a monção. 
Foi uma escolha se considerarmos que tudo o que fazemos é uma escolha. A verdade é que aquela era a única altura em que poderia ir; encaixaram os meus dias nos dias da viagem. Não quis nem tentei saber mais nada e, de planeado, só levei a mochila. Daqui para a frente a viagem seria feita dentro de um filho de pais que nunca supos poderem procriar: motor e parte dianteira de um camião de cimento soldado a um autocarro, adaptado a levar viveres, água potável num tanque, ferramentas, mochilas, material de campismo: um colosso em pneus.
A estrada começa de manhã, sinuosa, estreita mas suficiente para dois veículos de grande porte se cruzarem lado a lado, no limite do razoável, em espaço e em velocidade. Demora-se a viagem em curvas, contracurvas, desfiladeiros numa vertigem de verde e a ansiedade, minha, de ver outro veiculo a aproximar-se em sentido contrário. Começa a chover quando entramos na fronteira do Nepal com a India. Eramos 10 num camião, a percorrer estradas de terra, lugares de casas baixas e de uma divisão só, campos de verde até o horizonte, longe do que vem desenhado no mapa. O camião tem um procedimento administrativo diferente do nosso o que nos obriga a sair para a lama, pedras, entulho e lixo até ao posto de controlo: um papel e um carimbo para sair do Nepal. Mais à frente – gente que se acotovela, pedras e entulho, uma sopa que sinto debaixo dos pés quase nus, limpos de vez em quando pela chuva – novo posto de controlo: um papel e um carimbo para entrar na India: uma mesa corrida com 7 funcionários, numa espécie de alpendre e tenho de emprestar a minha caneta. Utilizo a palavra controlo mas pareceu-me, a dada altura e porque não faço barulho com os pés, porque a roupa que vestia não tinha muita cor e era simples e porque a cor de pele e do cabelo podem ser tão indianos como os que cá estão, que dei por mim a pensar que poderia passar sem nenhuma formalidade.

- O que escrevo aqui? - o meu inglês parece servir aqui, onde não se fala só com a voz. Acena-me com a cabeça num gesto que não decifro – É necessário escrever a morada? - não quero parecer ansiosa ou levantar a voz mas se ele não me entende agora vou atrasar o carimbo de que preciso no passaporte. Esbugalho os olhos e aponto com insistência para a linha no formulário, alternadamente e numa tentativa de completar a minha pergunta. O chocalhar de cabeça que fazem é tão revelador como uma burka.
- O nome do hotel serve. - neste canto do mundo não senti que as respostas fossem dadas por simpatia ou cordialidade mas por uma tolerância a quem aparece.
- É preciso mais alguma coisa? - depressa temos os carimbos necessários e tentamos sair dali.
- Vamos andando para a frente. É preciso almoçar antes de continuarmos.

A quantidade de gente que pássa na rua, em todos os sentidos e em todos os tipos de meios de transporte, é inverosímel. Chego a temer pelos meus pés a dada altura; sinto a poeira a consolidar-se na roupa, no cabelo e na pele o que me obriga a olhar apenas o chão para ver por onde ando e a encostar-me, rente, aos edifícios. Não há, em lugar nenhum, um único sinal de trânsito e o alcatrão determina onde é a estrada porque o resto são pedras, areia e lixo até ás portas dos edificios. O camião vai demorar mais um pouco por isso escolhemos um sitio para almoçar. Temos de deixar de pensar – se foi lavado o prato e o copo, de onde vieram os talheres, como me vou sentir se comer o pão amassado e frito naquele momento, ao pé de uma porta aberta, com umas mãos escuras, de pele e de pó.
Ainda sinto a distância de cá chegar. Ainda me sinto longe, tenho de me esperar chegar, como no Toubkal, onde só cheguei depois de descer a primeira montanha. Diziam-me, uns dias depois, que a alma demora um pouco mais a chegar ao destino onde a cabeça chega agarrada ao corpo – talvez seja isso que sinto. A paisagem, a comida e a língua com que tenho de me expressar sempre, é contrária a mim. Senti-me num esforço em fazer coincidir as palavras com o que queria dizer e acabei por dizer menos e sentir mais.
De tudo, sobraram fotografias e sensações que já pouco coincidem com o que aconteceu.  




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Paris, 27 de Março de 1924


Encontrei-te numa manhã de chuva, no Panteão de Paris, enquanto me perdia nas explicações do guia.
- Le pendule de Foucault est une expérience....
De cabelo apanhado, óculos pretos de massa e uma écharpe a estrangular-te, só podias esconder um mar de palavras.
Depois da visita, convidei-te por gestos para ir ao café. Enquanto bebíamos chocolate quente, éramos só silêncio, tu em francês e eu em português, cada uma concentrada na sua caneca. Mas eu estava em ti.
Quando ficaste com um pedaço de nata no canto da boca, limpei-o com o polegar e provei-o. Sabias a meia gota de chuva e eu queria provar o resto. Queria desenrolar-te da écharpe, tirar-te os óculos, soltar-te o cabelo preto que desliza até ao meio das costas. Queria beijar-te na nuca e sentir os ossos salientes da clavícula, a única respiração rectilínea que existe em ti. Descer e descobrir o resto da tua geometria, os teus seios, a tua barriga quente, o teu sexo, as tuas pernas e os teus pés até ficar tonta e tudo voltar ao início e os teus pés começarem na cabeça e nos olhos castanhos. E, assim, em círculo, o dia todo. Sempre.
- L'addition s'il vous plait.


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«Certa manhã, Lisboa acorda surpreendida com a presença de estranhos monólitos azuis espalhados pela cidade. Ninguém sabe de onde vieram, quem os trouxe e os colocou, nem porquê. São dezenas. As televisões abrem com directos frenéticos e entrevistas às primeiras testemunhas (noctívagos e homens do lixo). Nas redes sociais especula-se sobre o significado daquilo. Os ufologistas esfregam as mãos. Há quem faça mapas tentando identificar padrões. Pululam as teorias da conspiração. Entretanto, as autoridades isolaram os "achados".
A vossa história começa uma semana depois da descoberta. Ainda ninguém tem respostas para o mistério. O que se passa afinal em Lisboa?»


Os blocos azuis haviam transformado o mapa turístico de Lisboa, atraindo multidões às ruas estreitas do Martim Moniz e esvaziando o Chiado e a Rua Augusta. Ainda assim, se alguns habitantes se fecharam preventivamente em casa, se tantos outros se entregaram a suposições febris, muitos outros houve que continuaram com as suas vidas, evitando apenas passar nos cruzamentos com aquilo. Era este o caso da família Ferreira.
Não se pode dizer, no entanto, que a vida continua quando um filho deixa de falar. Aconteceu num sábado à tarde, quando a mãe foi pedir fósforos à vizinha e deixou a Matilde sozinha em casa. Quando regressou, a pequena estava sentada no chão, com o olhar perdido na parede branca. Ficou vários dias ali e, com o tempo, os seus olhos castanhos foram ficando mais claros, cada vez mais claros, até se tornarem azuis cristalinos da cor do mar em dias de céu varrido e, depois, esbugalhados como os olhos dos peixes na lota.
A decisão dos pais foi unânime e, numa noite em que o fumo dum cigarro se confundiria com o próprio nevoeiro, deixaram-na ao lado do bloco da Praça do Chile. No carro, sentiram o solo estremecer. Onde Matilde estava sentada, uma espiral de arco-íris irrompeu do centro da Terra e, atingindo o outro lado do Universo, transportou consigo a menina para um mundo de gnomos e seres esvoaçantes e com olhos de peixe. O ar confundia-se com a água, a água com a terra, a terra com o fogo e tanto se podia dormir numa fogueira como num bloco de gelo. Na língua daquele mundo, não existia tempo – presente, passado ou futuro – nem distinção entre andar, nadar ou voar se para todos estes verbos se dizia a palavra ujig, que significa «deslizar descobrindo».

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b


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Um grito de dentro do verde. A monotonia da cor, em variações de capim, suspirava debaixo dos silvos de vento Por cima, só o azul metálico do céu. E, de novo, um grito a fazer estremecer o chão, com a dor toda que têm mil feridas em pele qu
eimada, parecia não ir acabar. Assustaram-se os mutuns e os socós, que sairam em voo picado. Escureceu o céu, para dar inicio ao aguaceiro que demoraria até à noite. Um lamento de dentro do verde anunciou Abaé.O nome deu-lhe sua mãe, depois de sacudir o sangue das pernas, para que todos soubessem que era mais um.
Só conseguiria chegar à aldeia no dia seguinte por isso tinha de começar a andar agora. Podia caminhar o que quisesse, no tempo que fosse preciso – aquela terra fora considerada, em juizo e tribunal, a sua casa e não teria caminhar outro chão diferente daquele: o tekoha guasu, o chão da sua aldeia.
Saiu do capim e faltava-lhe ainda uma noite e algumas horas da manhã seguinte para chegar. Abaé escondia-se, de cara no peito da mãe, dormente.
- Está feito? - o seu irmão tinha vindo ao seu encontro
- Está. Podemos voltar agora.
Caminhavam agora os dois, em silêncio, interrompido a espaços pela criança e as absolutas necessidades de comer, dar de comer e dormir.
- Morreu Nadi – o seu irmão despejou a noticia com quem tosse um resto de comida da boca. Quase parou quando ouviu a noticia: a mãe de tantos, a sua mãe, morreu.
- Quando foi isso?
- Ontem, depois da lua.
Continuavam a andar, lado a lado, não podiam parar agora. Araci, segurou com a mesma força de antes Abaé contra o peito. Continuou a caminhar sem deixar de olhar a risca que dividia a terra do céu, deixou que saissem as lágrimas e, acho que ainda hoje chora um pouco quando olha o fio do horizonte.






exercício erótico



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Aquele nada tinha-a esgotado. Dava voltas sobre si e a cama mostrava-se pequena só para ela - talvez porque, mesmo sem estar, ele continuasse a ocupar demasiado espaço. O chão parecia-lhe melhor agora. Mais estável, mais honesto. Na cama esperava que corpos se misturassem e dessem mais de si do que a vergonha de se olharem vermelhos, despenteados, com a respiração apressada que têm aqueles que só querem que tudo demore.
No chão não.
Desceu ou caiu sem sentir.
No chão passavam pés, sapatos, dedos que se esmigalhavam uns aos outros para irem a qualquer lado. Ela não ia a lado nenhum. Estar em Paris ou noutra cidade do mundo era igual. O amor não vivia ali. Nela. E o chão estava cada vez mais frio. Ou ela.
Agora sabia que nunca devia ter perguntado nada enquanto ele lhe desabotoava a camisa e voltava a abotoar, abrindo a boca perto da sua orelha sem chegar a dizer uma palavra que fosse. Só a demorar tudo,
até o silêncio.
E ela achava que o percebia.
Mas mesmo assim perguntou.
E depois a pressa a abotoar a camisa dele,
já não a dela,
já não devagar.
Agora sabia que não era assim tão importante saber se ele estava realmente apaixonado por ela. Agarrou na sua camisa e começou a abotoar e desabotoar vezes sem conta, mudando a velocidade para perceber a diferença de querer ir ou ficar.
Enrolou-se sobre si e entre os joelhos segurou um
"não"
que durante anos ia manter as suas pernas
juntas,
no chão frio.

género policial - fim de história



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- É como vos digo. Estava lá tudo para quem quisesse ver. Bastava estar atento e não prender os olhos nas pedras da calçada, como se tentasse contar as pretas e as brancas, nem nos longos cabelos encaracolados das meninas que andam como se dançassem pela rua. O importante era prender os olhos em quem a polícia devia prender. E para isso era essencial olhar a morte bem de perto.
O detective Aureliano não se cansava de dar entrevistas. Desde que resolvera o crime que trancou a cidade em casa durante 11 semanas, eram os jornalistas que não paravam de seguir as suas pistas para saber sempre mais qualquer coisa: um pormenor esquecido do cadáver, um som quase surdo ou simplesmente o que ele andava a fazer naquele sítio àquela hora para juntar a peça do puzzle que faltava.
- O crime não apresentava falhas. Para os meus colegas era o crime perfeito. Para mim era quase perfeito.
Os corpos estavam quase intactos. Sempre. Tinham só os dedos dos pés cortados. Nos pés, antes do lugar onde deviam começar os dedos e que agora dava lugar a uma amputação, havia a numeração de 1 a 10. Do pé direito para o pé esquerdo. Do quinto para o primeiro pododáctilo. Foi aqui que começou a desconfiança do detective Aureliano.
- O criminoso só podia sern árabe.Depois foi tudo como já sabem, as pegadas incompletas na mesquita, a manicure que fingia ser pedicure mas não tinha um olho e enganava-se a cortar os calos e ainda se fazia de coitadinha por só ter meia vista e o mais importante, que nenhum outro detective reparou antes: todas as vítimas traziam sacos de sapataria de mulher com sapatos acabados de comprar.
Ahmad foi preso 11 semanas depois de começar a mutilação dos pés das mulheres que, por estarem sozinhas em zonas desertas da cidade não tinham a quem pedir ajuda e começavam a gangrenar dedo a dedo, pé a pé, morrendo a agonizar no chão frio da calçada. Com os olhos abertos presos ao chão como se contassem as pedras brancas e as pretas. Mas com certeza contavam só os segundos que pareciam anos até que a dor acabasse e elas também.
Em tribunal, o árabe confessou "Assim os pés delas cabiam à vontade num tamanho 34. A minha fábrica de sapatos infantis está quase a fechar. Nesta cidade não há crianças e milhares de empregados vão para a rua. Só queria salvar-nos da miséria. E poupar dinheiro às vítimas porque os sapatos até ao 36 são muito mais baratos. Só queria que elas voltassem a usar sapatos de criança. Atenção que são de couro verdadeiro".
- Esta é a minha 6ª entrevista de hoje. Saí em todos os jornais. Fui capa de diários e semanários. Abri telejornais e fechei conversas em jantares de todo o tipo de gente: de banqueiros a estudantes de liceu. Passei de detective do beco sombrio à meca dos detectives num mês, o tempo que demorei a resover o caso. Posso dizer, até com algum orgulho, que fiz com que os cidadãos deixassem de ter medo de andar na rua. Eu voltei a pôr a justiça de pé. As 57 mulheres, infelizmente, não.

género fantástico: pedras com luz azul em lisboa



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Blue stone says: A transição interplanetária continua com falhas graves. Jupiter não pode ser isto.
Ufo likes this


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1755 já lá vai e as pedras voltam a abanar em Lisboa. Desta vez são azuis e deitam uma luz que se vai intesificando com o avançar da hora. Como se as pedras soubessem que a noite precisa de uma ajuda para ser vista.E a cidade não dorme há uma semana. A luz azul, apesar de parecer suave, tem um raio de alcance considerável (cerca de 50 km durante o dia e 75 durante a noite).
A polícia mantém-se vigilante. É importante não deixar que a população toque nos monólitos mas também é importante controlar os estragos na vida dos cidadãos: começam os acidentes porque o parar e on avançar nos semáforos se tornam azuis; várias pessoas julgam-se capazes de andar sobre a água porque o asfalto ficou azul e  caem ao rio por não distinguirem as duas superfícies e os aviões sentem em toda a cidade uma pista de aeroporto podendo aterrar no meio de uma praça ou até num beco da cidade.
O caos instalou-se com 2 pedras com uma luz azul. As investigações avançam de dia para dia mas as opimiões divergem:
Para o Arqueólogo Ramirez é importante agradecer esta oportunidade de perceber que o neólitico também existiu noutros planetas;
Para o ufologista John F. Smith a rota só pode ter sido saturno, jupiter e marte. Era impossível para um ovni trazer este tipo de pedras sem fazer escalas para reabastecer.
Mas os cidadãos comuns também têm coisas para dizer:
Para um homem encarregue do lixo as pedras são impossíveis de transportar no camião - além disso era uma pena deitar fora sem tentar a reciclagem de tanta matéria;
Para um adolescente que deambula pela noite com restos de música no sangue e de cerveja na cabeça, as pedras são uma nova discoteca mas ainda não pode ter inaugurado senão ele teria sido convidado.

Mas a solução do fenómeno que abalou Lisboa está nas mãos do Agente De Lopes. Foi durante o seu turno de patrulha em torno do Parque Eduardo VII que as pedras cairam. Ou melhor, surgiram. Num abrir e fechar de olhos que não pode ter demorado mais do que 10 minutos de sono. Quando acordou viu 3 jovens que corriam e as pedras que brilhavam à sua frente. Ao voltar ao local do seu turno encontrou escondido num arbusto uma máquina de projecções. Tudo era irreal. Os ufologistas choraram, os arqueólogos pegaram nos pincéis e voltaram para as ruinas romanas e as velhinhas confirmaram que o cinema no seu tempo, a preto e branco, era muito melhor do que a cores.
Os culpados entregaram-se e confessaram:
- Estamos muito contentes com o sucesso da nossa ideia. Queriamos mostrar que lisboa é uma cidade de passado e de futuro, que a presente conjuntura é passageira. E mudámos o foco de atenção dos portugueses que, durante uma semana esqueceram, a crise.

O video dos monólitos de Lisboa teve 595472 visualizações no youtube  numa semana; "Granda pedra!" foi, claramente, o comentário mais usado no facebook e o Agente de Lopes recebeu mais de 500 pedidos de amizade.

Saudades



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Bateu-me à porta a chorar, as lágrimas reluziam com a luz da entrada, a gota estava a chegar ao canto da boca, não nos víamos há demasiado tempo. Com o meu polegar afastei a lágrima do canto da boca, passei a mão pela cara, pela pele que não sentia o que parecia ter sido uma eternidade, pelos cabelos que passaram pelos meus dedos como as lágrimas que lhe caíam pela cara. Agarrei-lhe a nuca e beijámo-nos. Os segundos passaram tão devagar como o tempo passou sem eu a ver. Mordi-lhe gentilmente o lábio superior e limpei-lhe as lágrimas com beijos.
Não dissémos nada, não era preciso, nunca foi. Enquanto passava os meus lábios nos dela, a minha mão esquerda agarrou-lhe a cintura e encostei-a à parede. “Desculpa” saiu-lhe da boca em tons de “Amo-te”. Não respondi, encostei a minha testa à dela, sorri como quem sorri quando ganha razão passado muito tempo, um sorriso feliz pintado de ironia.
Peguei na mão dela, branca e pequena e indiquei o caminho para o meu quarto, ela já o sabia de cor.
Fechei e tranquei.
Olhei-a nos olhos, já não choravam. Nos olhos via amor, na boca uma lúxuria misturada com o sorriso de uma criança inocentemente feliz.
Agarrei-a com a mão direita a cintura, com a esquerda desapertava-lhe o casaco. Tirou um braço, sem muito esforço o outro. Sem o casaco empurrou-me para a cama, sentei-me a ver o que pensava ser um sonho do qual não pretendia nunca acordar.
Ela olhou para o quarto, tentando lembrar a vida que um dia foi dela e passou por ali. Olhou para a parede e viu que o que tinha sido uma oferenda dela para mim, um vinyl que ainda hoje está pendurado à parede do meu quarto e sorriu de novo. Não a tinha esquecido, todo o quarto era dela, o seu reino, a rainha que tinha um rei de joelhos a oferecer-lhe tudo. Do vinyl, os seus olhos amarelos escuros e os lábios rosas, quentes, molhados de saliva e secos do frio viraram-se para mim. Estava prestes a tornar-se no animal sedento de carne que eu tenho saudades.
Sempre com os olhos postos no meus, como quem tem milhares de conversas ao mesmo tempo, como quem me pede desculpas que eu aceito, sabendo que não o devia, como quem me explica porquê, dizemos um ao outro, só com os olhos que não temos futuro. Não vamos falar, não vamos estragar tudo e racionalizar as nossas escolhas. Olha-me nos olhos, beija-me.
Empurrou-me como quem manda deitar, o joelho direito entre as minhas pernas, beija-me os lábios, as linguas abraçam-se com saudades, morde-me a orelha, beija-me o pescoço. Já estava sem camisa quando lhe peguei para ser eu agora a abraçar a lingua dela, beijar-lhe a orelha, morder o pescoço, ajudá-la a levantar os braços para tirar do caminho a camisola, o top de alçinhas que não era novo, azul violeta, a cor favorita dela.
Saí de cima dela para me por de pé e desajeitadamente tirar os sapatos e as meias, ela aproveitou a deixa, sentou-se para tirar as meias e descalçar os sapatos, muito mais delicadamente do que eu. Depois puxou-me para si, beijava-me o peito e desapertava-me o cinto, tirou-me as calças. Durante uns segundos beijou-me os boxers, eu mordia os lábios a pensar nos dela. Segurei-lhe o cabelo com autoridade e empurrei-a para a cama. Tirei-lhe o cinto, puxei-lhe as calças. Tirei-lhe as cuecas e abri-lhe as pernas. Que saudades. Beijei-lhe a bexiga, beijei-lhe o umbigo, beijei-lhe o peito, entre os peitos, beijei-lhe o pescoço e mordia-lhe os lábios enquanto o soutien saía de cena. Eu não merecia aquele corpo, ela não merecia o meu ser. Calados, não estraguemos o nosso amor e as nossas saudades, as felicidades e as tristezas a racionalizar. Não racionalizemos a paixão ardente que temos um pelo outro. Beijei-lhe os seios, a mão deslizava pelo corpo até encontrar o que queria, o que precisava. Começou a gemer. Agarrou-me nos cabelos como se estivesse a cair, começou a gritar, a contorcer-se. Voltei à boca, Fechei a luz.


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O cheiro das flores vem de fora e enche o quarto. Não consigo dormir. Não consegui adormecer desde que saiste ontem, a meio da noite. Viro a cara para baixo e respiro o cheiro da almofada – o teu cheiro. O aroma, intenso e acre, da tua pele quente que segurei com as mãos e o corpo todo. Sem tentar, vejo de novo o contorno do teu corpo, aprendido ontem, em cada pequena ruga, com a minha boca.
E hoje faltas-me.
O sol voltou para dentro do quarto e a cama revela a noite de ontem. Os lençóis ficaram como os deixamos – revoltados e soltos. E eu, meu amor, estou nua como me deixaste – a sentir-te ainda dentro de mim, num eco de nós.
Não consigo mexer-me. Não quero mexer-me. Quero fechar os olhos e voltar a sentir o caminho das tuas mãos através do meu corpo. Ouço ainda o que me disseste sussurrado no ouvido enquanto me fechavas nos teus braços. Fecho os olhos e toco-me. Faço-o de novo e trago-te, de ontem, para os lençóis de hoje.


3 minutos



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Instrucciones para llorar 


Dejando de lado los motivos, atengámonos a la manera correcta de llorar, entendiendo por esto un llanto que no ingrese en el escándalo, ni que insulte a la sonrisa con su paralela y torpe semejanza. El llanto medio u ordinario consiste en una contracción general del rostro y un sonido espasmódico acompañado de lágrimas y mocos, estos últimos al final, pues el llanto se acaba en el momento en que uno se suena enérgicamente. Para llorar, dirija la imaginación hacia usted mismo, y si esto le resulta imposible por haber contraído el hábito de creer en el mundo exterior, piense en un pato cubierto de hormigas o en esos golfos del estrecho de Magallanes en los que no entra nadie, nunca. Llegado el llanto, se tapará con decoro el rostro usando ambas manos con la palma hacia adentro. Los niños llorarán con la manga del saco contra la cara, y de preferencia en un rincón del cuarto. Duración media del llanto, tres minutos.

Julio Cortázar





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Caminhava em direcção a casa, a meio da terceira noite sem dormir. Não pensava em nada. Sentia-se exausto de vida e de ideias e só queria sentar-se um pouco. Ás horas perdeu-lhes o conto mas estava demasiado frio e a rua demasiado deserta para ser cedo. A recordação de Isabel, como uma fotografia, não lhe saía da cabeça. Tinha olhado, falado, tocado nela; foram tantas as vezes naqueles três dias mas, ainda agora, se surpreendia. A casa estava fria – tinha deixado uma janela entreaberta – e a loiça na bacia cheirava mal. Mas só conseguiu sentar-se e apenas por um momento. Acendeu um cigarro no escuro e perdeu o olhar na chama do fósforo até se queimar. De todos os casos que investigou, este ficaria marcado na cicatriz – ainda fresca – que ardia no tronco. Escostou-se lentamente ao espaldar da cadeira para evitar a guinada de dor e bafurou outra vez o cigarro. Isabel não existia em nenhuma das ideias, feitas ou por fazer, que tinha das mulheres ou até mesmo de gente. O movimento firme, calculado e limpo com que se abre uma garganta, definiu-o ela. A brancura da sua pele, nunca a viu suja ou tingida, enrugada ou com alterações de temperatura, o gingar da passada era certo e falava sempre sem inflexões na voz – constante, glacial, hipnótica. Cada cabeça que deixou exangue, deixou-a também serena e algumas com olhos que pareciam suplicar por mais. E cada uma, disse-lhe ela finalmente, foi como uma respiração que precisasse de fazer. Nunca, em toda a sua vida, vivida entre escroques e homicidas, conhecera alguém como ela. Tinha saído a tempo da esquadra onde a interrogou pela última e esclarecedora vez; perto do fim tinha sentido um anzol a puxá-lo para perto das mãos dela – quietas, brancas, suspensas – e, se ficasse mais tempo, teria pedido que lhe cortasse a garganta a ele também. Ficaria, também ele e finalmente, sereno.





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Quando o telefone tocou às 2.32, já sabia o que a voz do outro lado me iria anunciar: mais um crime na cidade vizinha de Castelo Novo. Não posso dizer que me tenham acordado: o sono é um privilégio que raras vezes me é concedido. Então era eu a escolhida para investigar a morte da terceira funcionária da fábrica Conserva, após dois casos não resolvidos? Deviam estar desesperados para me telefonarem depois de praticamente me terem despromovido a secretária. Se eu fosse apenas orgulho, teria recusado; mas também fui curiosidade e vontade de ver justiça feita.
            Local? O mesmo dos crimes anteriores, o baldio atrás da fábrica. O modus operandi? Sempre diferente. Desta feita, asfixia. O Agente Costa farejou-me antes de eu o ver. Fora ele a encontrar o corpo.
            – Só pode ser o mesmo gajo! Arrancou outra vez os dentes e rapou-lhe o cabelo.
            – Como sabes que é um homem?
            – Só pode! Esta brutalidade é... Só pode vir de um homem!
            – Costa, pelos vistos ainda não sabes do que uma mulher é capaz. Mas conta-me mais.
            Nada surpreendentemente, o Costa pouco mais sabia. Mas o técnico Fonseca chamou a minha atenção para algo interessante: em cima do peito da mulher, estava meia tarântula. Corte limpo.
            Era uma noite fria, demasiado fria para o impermeável leve que eu vestia. Enquanto esperava a chegada do administrador, pensei: uma tarântula pode ser uma marca, um código. Mas meia tarântula é um aviso.
            – Boa noite, Sr. Marques. Lamento incomodá-lo a estas desoras.
            – Ora essa. É uma tragédia.
            – De facto – respondi. – Acha que podemos dar uma vista de olhos à sua colecção de aranhas?

Nr. 1



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Numa Noite.

Numa noite saiu um poema,
podia ter saído outra coisa.
Saiu um grito,
saiu um grito de um garoto aflito.

O que fizeram...
O que querem que eu faça?
Os meus sonhos arderam,
o tempo por mim passa.

Eles dormem...
Mas não sonham.
Eles comem.
e eles fodem.

Eu não durmo...
E arranjo-me com aprumo.
Preciso de trabalho.
Não ser um paspalho.

Ajudem-me! Grito eu...
Ninguém me grita de volta.
Acudam-me! Grito eu...

silêncio.

Balizas



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Era de manhã, estava uma manhã clara escondida atrás de um nevoeiro espesso. Estava atrasado, mas fui eu que assim o quis, a culpa era minha. A morte de um artista que se recusou a sê-lo, e deu um tiro na cabeça enquanto me culpava a mim.
Não fui á missa, não me sinto bem ali dentro. Pedem ao padre pelo arrependimento do filho, e o padre pede mais dinheiro. Lembra-se que o evento mais próximo cristão está a chegar e há postais que se podem comprar à porta. Que peguem eles no seu ouro, nos seus livros, na sua arte e a usem para o que dizem apregoar.
Fui ter ao cemitério, fui sozinho. Estacionei longe, queria andar a pé, preparar-me antes de entrar pelos portões velhos, com tons de musgo, húmidos e pesados. O nevoeiro cerrava-me a vista, só via uns metros à frente. Não admira que um rei se tivesse perdido ali.
O muro era grande, não dava para olhar lá para dentro, mas se o fizéssemos dávamos de caras com um futuro certo.
Lembrei-me de quando nos conhecemos, tinhamos dez anos, a turma era nova e ele sentou-se atrás de mim. Brincadeiras de escola, trabalhos em grupo, intervalos... Uma amizade com treze anos. Que saudades desses tempos tão inocentes, saudades das palavras do Pessoa.
“Pensava que não vinhas...” - perguntou-me ela, interrompendo-me o pensamento.
“Não queria vir...”
“Ainda bem que vieste.”
Sorrimos um sorriso demasiado triste para ser verdadeiro, fomos calados em direção aos portões. Acompanhámos os muros brancos, gastos e sujos. Pisámos o chão húmido, seco e cinzento. Passámos por pessoas que se desviávam por nós, sabendo no intímo que era em direção a um último adeus que caminhávamos.
Em frente aos portões estava um banco de rua, em tudo igual aos portões, menos na forma.
Afastei-me dela para me perder no nevoeiro e estar sozinho antes de entrar. Sentei-me. Pus as mãos na cara, comecei a chorar. Quanto tempo vai isto durar?
Do nevoeiro uma sombra pequena desceu rapidamente e aterrou, fez uns moviementos bruscos que tinham o chão como alvo. E subiu tão depressa como desceu. Eu sorri, a vida continuava aos meus olhos. Nem tudo estava perdido.

Descrição



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Rodearam-me com a curiosidade instintiva de animal, avançando como um tornado lento, até me engulirem por completo. Foi como se a morte me tivesse rodeado e perguntado qual a direção que gostaria de tomar. A luz que vinha de lá longe, e pedia que eu me arrependesse, ou o sentido contrário, um negrume obscuro, sem vida e estranhamente em paz.
Preferi ficar quieto, perdi-me no reflexo das escamas, que mostravam uma figura demasiado acanhada. Perdida num mundo que não era o seu.

Sem "ques"



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Eu estava à espera do comboio, dou por mim constantemente à espera de alguma coisa e ali estava, com uns minutos para matar. Era diferente hoje, por questões de logística estava numa estação diferente. O chão estava húmido, parecia estar sujo de lama. Não passava da humidade reflectindo a luz amarela dos postes. Dava àquilo um ambiente solitário, mas também seguro. Numa estação á noite olhamos para a esquerda e está escuro, olhamos para a direita e escuro está. Ali sentimo-nos estranhamente seguros. É o melhor de uma má situação. Ficamos em frente a uma casa velha, tinta a cair, janelas partidas e remendadas com pedaços de madeira, graffitis feios e de várias cores fingem enfeitar uma parede velha, deixando para trás o branco novo já esquecido.
Eu estava à espera do comboio, meti o carupuço numa tentativa de me camuflar naquele ambiente.
Queria parecer pertencer ali.
De longe vi uma figura aproximar-se, também estava de carapuço, cabelos sujos, sacos de plástico numa mão, uma garrafa de cerveja na outra, um sapato rasgado, um sobretudo velho, ruço, cheirei-o antes de ele me falar:
“Mano, tens um cigarro?” - Maldita a hora em que eu acendi um cigarro, não lhe podia dizer não.
“Ya, mas são de enrolar.” - O tabaco de enrolar além de ser mais barato, é um obstáculo a muitas pessoas. Não sabem enrolar, não estão para aprender e é muito mais fácil cravar a outro. Mas há sempre alguém sem medo de insistir no assunto.
“Podes enrolar-me um?”
“Que remédio não é...?” - rimo-nos os dois, muito a medo, eu não o conheço, ele não me conhece. Podiamos ser os dois uns malucos da cabeça, ter um ataque e dar cabo do outro.
Naturalmente não tinhamos nenhum assunto a tratar, eu e ele. Eu vou enrolando o cigarro muito a custo, com as mãos a tremer ligeiramente de medo do público.
Lá lhe dei o cigarro, ele agradeceu e perguntou se eu não me lembrava dele. Eu olhei-o, tentei lembrar-me, já o tinha visto pela rua a pedir cigarros, dinheiro ou bebida.
Pedi desculpa por não me lembrar dele, e a vida continuou. Já estava em casa quando me veio á memória uma noite pesada. Uma das minhas noites prometidas ao esquecimento. Já sabia quem ele era, andei com ele uma noite pelas ruas, a pedir cigarros, dinheiro ou bebida. Lembro-me de ter fumado muito, bebido ainda mais e ter gasto dinheiro da carteira dos outros. Não me lembro do porquê de ter decidido esquecer aquela noite.


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Na madrugada do dia 5 de Outubro de 1910, enquanto o Almirante Cândido dos Reis se suicidava ou se deixava matar em Arroios, nascia o meu avô noutro bairro de Lisboa, na Rua Pedro Dias. Na véspera, a sua mãe observava, da janela verde de guilhotina do quarto, um pardal a debicar um caroço de maçã caído na rua.
– Para a ralé, estas coisas dão sempre para o torto – protestou José, o seu marido.
– Deus cuidará.
Voltou para a janela e, contemplando o rio Tejo, apercebeu-se da mudança do tempo, das nuvens que, primeiro tímidas, se aproximavam, criando vultos fantásticos de dragões-sereia e cavalos-estrela. Depois, mais carrancudas e cinzentas, foram deixando cair umas gotas, aqui e ali, como que querendo limpar o sangue da cidade, mas sem coragem.
Então, Fátima sentiu o sangue que lhe escorria pela perna esquerda, como que a lambendo, e viu também o sangue das gerações que se seguiriam: o sangue do meu pai na Guiné e o meu sangue, hoje, aqui.
– Deus nunca cuida – respondeu.

1 nascimento, 1 morte, 1 pássaro, referência de meteorologia, descrição de paisagem, diálogo e acontecimento histórico



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Uma estranha frente fria de verão empurrava o corpo de dentro para fora. As pernas afastadas, poisadas no ar, construíam um caminho de espaço que depressa se revelou apertado para a cabeça daquele que um dia seria nunca menos do que cinco. Fernando passou e todos o agarraram, abraçaram e confirmaram desejar por não saberem que nunca iam compreendê-lo. Depois nasceram Álvaro, Alberto, Ricardo e Bernardo mas ninguém deu por nada nem deu nada por eles. Pelo menos naquele dia, naquele quarto com a janela aberta para um largo no chiado onde as cinco árvores nunca teriam folhas suficientes para tudo o que ele(s) ia(m) escrever. E os pássaros, que parecem perceber mais da natureza humana do que as pessoas, gritavam de ramo em ramo
- O primeiro livro é para os pardais.
Anos mais tarde o poeta enganava-se a si próprio para não dar nada às aves que o viram nascer e respondia-lhes:
- Sei de sobra que nunca terei uma obra.
Uma estranha frente quente de inverno empurrou o corpo de fora para dentro. A terra estava húmida da chuva, da rega e das lágrimas de quem fez o caminho antes. Os poucos amigos disseram adeus a um e as árvores do cemitério despediram-se de cinco. Desde então deixaram de ter razões para dar folhas e o inverno ficou ali, a adormecer para sempre um sonho:
- Enquanto dura esta hora, este luar, estes ramos, esta paz em que estamos, deixem-me crer o que nunca poderei ser.


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Acordei preocupada com as minhas unhas e as peles à volta. Não era para menos: era o dia do meu casamento e, como qualquer noiva, queria estar perfeita. Ainda havia as unhas e as peles à volta para tratar, o penteado, a maquilhagem e muitos outros pormenores. Deitada na cama, soterrada em pensamentos e preocupações, ouvi o telemóvel. Era o Sr. António, o homem do restaurante.
- Menina Rita, tenho uma péssima notícia.
Silêncio.
- Diga, diga.
- Faltou a electricidade durante a noite toda e a comida fria ficou estragada: o marisco, as sobremesas, as carnes, o peixe, praticamente tudo. É um desastre.
Engoli.
- Achei por bem avisá-la já.
- Claro. Obrigada.
Caímos ao chão, primeiro o telemóvel e depois eu.

O insuperável para uns é um desafio para outros. A minha mãe é enfermeira e adora emergências. Antes de eu recuperar a consciência, já tudo estava resolvido. Iria partilhar o copo d’água com outro casal, no restaurante do primo do Sr. António, incapaz de recusar o desconto de 50%.

Um blogue



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Um blogue que vale muito a pena.


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A terra amarela, enxugada de meses sem chuva, cobre-se apenas de sombras que anoitecem. Ao longe, a linha que divide o chão do resto, ondula a cada passo arrastado, e o resto apequenou-se no tamanho, de tão longe que ainda é; só a tarântula que me sobe a perna é grande e insuflada - os olhos de perto e os de longe, confundem-se quando se caminha em terras secas e largas como esta.
É preciso caminhar, ao ritmo de ponteiros, todo o dia para se chegar à linha ao longe. Ainda assim, mesmo depois do castigo de vergastadas do sol um dia inteiro, só se chega perto da noite, debaixo da ameaça cumprida, de chuva; não se consegue pensar em nada dos joelhos para cima.
É lá, na linha ao longe, que já de noite e debaixo de chuva miudinha, anunciadora da borrasca, que se procura abrigo nas rochas e se espera pelo sol seguinte.



medo!



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uma mulher na orelha



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As linhas retas não encontravam espaço nela. As curvas entonteciam pelos tornozelos, pernas e coxas. Gritavam nas ancas e continuavam pelo peito até ensurdecerem a orelha, em voltas perfeitas. Na mão segurava um búzio que se distinguia com dificuldade nas curvas e contra curvas que se misturavam entre o preto da concha e o branco da orelha. Talvez uma volta a menos e fosse ao contrário: a orelha preta e a concha branca. O importante era ouvir o mar e tapar os ouvidos aos assobios dos homens, que avançavam tirando um pé do chão de cada vez sem nunca tirarem os olhos dela, e a quem, só por respeito a si própria, não mandava dar uma curva.

Excerto da música "No Church In the Wild" (Kanye West)



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Human beings in a mob...
What's a mob to a King?
What's a King to a God?
What's a God to a Non Believer,
Who don't believe in anything?
We'll make it out alive...
Alright, alright, no church in the wild.

mania das grandezas



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O porco queria ser mais forte e por isso queria ser javali.
O gato queria ser mais corajoso e por isso queria ser pantera.
O pássaro queria ser mais respeitado e por isso queria ser águia.
O menino queria ser mais forte, corajoso e respeitado e por isso não queria ser homem.



Queria ser menino grande.


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A última entrevista de Philip Roth pode ser lida aqui.

Bolo de nozes e canela



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Naquela manhã de terça-feira, não havia motivo para suspeitar que alguém iria morrer. Com a família reunida à volta da mesa rectangular, Arminda, de pé e um pouco inclinada para a frente, mais parecia um maestro, exigindo a cada músico que tocasse a sua partitura sem fífias. Mas também tinha um coração nobre, que se contorcia quando um filho caía, esfolando um joelho, ou havia uma arrelia. À cabeceira oposta, José, o marido, à sua direita, Ana e Maria, à sua esquerda, João e Manuel.
            A casa era simples, mas suficiente, pensava. Três quartos para seis pessoas: ela e o José num, as raparigas no outro, os rapazes no último. De resto, pouco tempo passavam em casa. Andavam de bicicleta, trabalhavam no campo, apanhavam amoras e figos no verão, marmelos e castanhas no Outono. A chuva escasseava.
            Naquele dia, Arminda levantou-se cedo, antes de todos, o sol ainda no horizonte. Haveria de ser um dia quente, já se sentia. Preparou o café com leite, habitual início de manhã. Mas se lhe tivessem dito que este seria um dia igual aos outros, não teria acreditado. Talvez um pressentimento, talvez uma picada no coração, quase imperceptível. Com a colher de pau, acabou o bolo de canela e nozes com a receita transmitida de geração em geração às mulheres da sua família.
            Agora, conduzindo cada elemento da sua orquestra, não compreendia a origem da dor que lhe queimava o peito. Estonteada, agarrou-se a ele, como se esse gesto a pudesse salvar e, nada sentindo, percebeu que era o fim.

Crónica «Sobre o Facebook, Face ou FB»



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Não tenho Facebook. Pronto, confessei. Precisamente, confessei. Porque, hoje, não ter Facebook é um crime equivalente ao de ter matado a mãe e o pai. E depois o cão. E o gato. Ok, não é assim tão mau, mas, além de mim, quem mais, em Portugal, não tem perfil no Face? Eu digo-vos: uns quantos psicopatas – e de certeza que há estudos que provam isto. O Cavaco Silva tem Face, o quiosque da esquina tem Face, o meu pai tem Face, os meus sobrinhos com mais de 7 anos têm Face. O que é que isto diz sobre mim? Que sou a salsicha no cachorro quente tecnológico: de um lado, uma geração que viu um computador pela primeira vez depois dos 50 anos e que se esforçou por se actualizar; do outro, os miúdos que praticamente nascem com um IPad na mão e que fazem deslizar o dedo indicador sobre o ecrã táctil como se a Humanidade nunca tivesse feito outra coisa.
            E depois estou eu, a autopromovida salsicha: informatizei-me conforme a necessidade, mas nunca com verdadeira paixão. A minha presença na Internet limita-se à conta de correio electrónico. Com efeito, criar uma conta gmail foi praticamente o auge da minha evolução tecnológica. E não chegava bem ir trocando uns e-mails durante o dia com os amigos? O problema é que há pessoas que já nem usam correio electrónico. Ainda há pouco tempo, perguntei a um colega de 19 anos (que ainda haja pessoas de 19 anos que falam comigo é um milagre) se poderia enviar-me duas ou três fotografias.
            – Ok, dá-me o teu Facebook – foi a resposta instantânea dele. Mais uma vez, como se a Humanidade nunca tivesse dito outra coisa. Não consigo descrever a sua expressão de choque quando revelei que não tinha FB.
            Mas não é que eu seja uma completa analfabeta tecnológica: trabalho oito e mais horas por dia ao computador, com vários programas que tiram do sério nove em cada dez pessoas, segundo as minhas estatísticas inventadas agora mesmo. Por isso, posso dizer que a minha aversão ao Facebook supera a inaptidão tecnológica. Na verdade, não vejo o interesse de partilhar todos os pensamentos e cada uma das 143 fotografias tiradas ontem na discoteca. Além disso, e se a pessoa errada descobre onde moro? Ou onde estou a passar férias?
            Evidentemente, há algo de paranóico neste meu medo: ninguém vai descobrir onde moro nem cortar-me às postas durante as férias. Ainda assim, não quero like, nem share, nem follow e muito menos comment a fotografia apaixonada do meu ex com a sua nova namorada.
            Mas o mais irritante do Face nem é o facto de lixar a vida social de quem não o tem. Já me mentalizei que não irei a este ou aquele jantar por não receber o convite pelo FB. Mas, quando me dizem que, sem perfil facebookiano, não tenho credibilidade profissional, colocam-me perante um profundo dilema. Ai... Ter ou não ter Face, eis a questão.

O Mundo Dá Voltas



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Não é que eu já tenha vivido imensos anos e presenciado imensas situações que me façam chegar a este tema, no entanto sinto, não como uma cidadã deste mundo, mas como uma pessoa que amanhã poderá ser alguém, que devo avisá-lo a si, caro leitor, e a outros interessados que o mundo dá voltas.
Ah, pois, mas isso já eu sabia, é o que provavelmente está a pensar.
Sim, meu estimado, sabia, mas muitas vezes (e não estou a dizer que você o faça) há quem se esqueça que essas voltas não são apenas literais, mas também figurativas. É que o jovem ignorante que limpa as escadas do seu prédio todas as tardes amanhã poderá ser o filho da mãe que ainda não lhe pagou o salário!
Ainda não chegou lá? Deixe estar que eu ajudo-o.
Com a crise que vai por aí, muitos são os jovens que se vêm forçados a trabalhar para conseguir pagar os estudos. Empregos como limpar escadas, limpar corredores de condomínios, fazer limpezas, trabalhar em restaurantes, enfim em todo o tipo de serviços que você não se imaginaria a realizar, são muitas vezes as melhores opções, quando em part-time, por se encaixarem muito bem na vida de um estudante.
A questão aqui é que as pessoas gostam de acreditar que quem tem estes empregos não tem objectivos, não pensa em estudos, não pensa em ser alguém nesta vida, mesmo que nunca tenham falado com os julgados. E por algum motivo (que tenho a certeza que me consegue explicar muito bem) acreditam-se superiores a estes gaiatos e tratam-nos abaixo de cão, reclamando de tudo o que fazem, gozando com eles, desconsiderando-os.
Agora provavelmente está a pensar que a prova de que estes jovens são ignorantes é que não respondem quando os ofende com palavras mais caras ou frases mais indirectas, não é? Eu cá acho que eles não respondem porque não querem perder os empregos, pois precisam deles para pagar os cursos… para amanhã serem alguém… porque o mundo dá voltas… e quem sabe amanhã, meu amigo, você seja ninguém… Não? Olhe que o mundo dá mesmo voltas…
Só lhe digo uma coisa, do jeito que o mundo roda, é bom que seja vidente antes de dar uma de superior para cima dos pobres coitados que se limitam a fazer pela vida. Já agora se o ofendi peço perdão pela forma rude como me dirigi a si, só estava a tentar fazê-lo perceber bem o meu ponto de vista. Isto é, peço desculpas, se o leitor não mora em Cascais, claro.
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