género policial - fim de história



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- É como vos digo. Estava lá tudo para quem quisesse ver. Bastava estar atento e não prender os olhos nas pedras da calçada, como se tentasse contar as pretas e as brancas, nem nos longos cabelos encaracolados das meninas que andam como se dançassem pela rua. O importante era prender os olhos em quem a polícia devia prender. E para isso era essencial olhar a morte bem de perto.
O detective Aureliano não se cansava de dar entrevistas. Desde que resolvera o crime que trancou a cidade em casa durante 11 semanas, eram os jornalistas que não paravam de seguir as suas pistas para saber sempre mais qualquer coisa: um pormenor esquecido do cadáver, um som quase surdo ou simplesmente o que ele andava a fazer naquele sítio àquela hora para juntar a peça do puzzle que faltava.
- O crime não apresentava falhas. Para os meus colegas era o crime perfeito. Para mim era quase perfeito.
Os corpos estavam quase intactos. Sempre. Tinham só os dedos dos pés cortados. Nos pés, antes do lugar onde deviam começar os dedos e que agora dava lugar a uma amputação, havia a numeração de 1 a 10. Do pé direito para o pé esquerdo. Do quinto para o primeiro pododáctilo. Foi aqui que começou a desconfiança do detective Aureliano.
- O criminoso só podia sern árabe.Depois foi tudo como já sabem, as pegadas incompletas na mesquita, a manicure que fingia ser pedicure mas não tinha um olho e enganava-se a cortar os calos e ainda se fazia de coitadinha por só ter meia vista e o mais importante, que nenhum outro detective reparou antes: todas as vítimas traziam sacos de sapataria de mulher com sapatos acabados de comprar.
Ahmad foi preso 11 semanas depois de começar a mutilação dos pés das mulheres que, por estarem sozinhas em zonas desertas da cidade não tinham a quem pedir ajuda e começavam a gangrenar dedo a dedo, pé a pé, morrendo a agonizar no chão frio da calçada. Com os olhos abertos presos ao chão como se contassem as pedras brancas e as pretas. Mas com certeza contavam só os segundos que pareciam anos até que a dor acabasse e elas também.
Em tribunal, o árabe confessou "Assim os pés delas cabiam à vontade num tamanho 34. A minha fábrica de sapatos infantis está quase a fechar. Nesta cidade não há crianças e milhares de empregados vão para a rua. Só queria salvar-nos da miséria. E poupar dinheiro às vítimas porque os sapatos até ao 36 são muito mais baratos. Só queria que elas voltassem a usar sapatos de criança. Atenção que são de couro verdadeiro".
- Esta é a minha 6ª entrevista de hoje. Saí em todos os jornais. Fui capa de diários e semanários. Abri telejornais e fechei conversas em jantares de todo o tipo de gente: de banqueiros a estudantes de liceu. Passei de detective do beco sombrio à meca dos detectives num mês, o tempo que demorei a resover o caso. Posso dizer, até com algum orgulho, que fiz com que os cidadãos deixassem de ter medo de andar na rua. Eu voltei a pôr a justiça de pé. As 57 mulheres, infelizmente, não.

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