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Um grito de dentro do verde. A monotonia da cor, em variações de capim, suspirava debaixo dos silvos de vento Por cima, só o azul metálico do céu. E, de novo, um grito a fazer estremecer o chão, com a dor toda que têm mil feridas em pele qu
eimada, parecia não ir acabar. Assustaram-se os mutuns e os socós, que sairam em voo picado. Escureceu o céu, para dar inicio ao aguaceiro que demoraria até à noite. Um lamento de dentro do verde anunciou Abaé.O nome deu-lhe sua mãe, depois de sacudir o sangue das pernas, para que todos soubessem que era mais um.
Só conseguiria chegar à aldeia no dia seguinte por isso tinha de começar a andar agora. Podia caminhar o que quisesse, no tempo que fosse preciso – aquela terra fora considerada, em juizo e tribunal, a sua casa e não teria caminhar outro chão diferente daquele: o tekoha guasu, o chão da sua aldeia.
Saiu do capim e faltava-lhe ainda uma noite e algumas horas da manhã seguinte para chegar. Abaé escondia-se, de cara no peito da mãe, dormente.
- Está feito? - o seu irmão tinha vindo ao seu encontro
- Está. Podemos voltar agora.
Caminhavam agora os dois, em silêncio, interrompido a espaços pela criança e as absolutas necessidades de comer, dar de comer e dormir.
- Morreu Nadi – o seu irmão despejou a noticia com quem tosse um resto de comida da boca. Quase parou quando ouviu a noticia: a mãe de tantos, a sua mãe, morreu.
- Quando foi isso?
- Ontem, depois da lua.
Continuavam a andar, lado a lado, não podiam parar agora. Araci, segurou com a mesma força de antes Abaé contra o peito. Continuou a caminhar sem deixar de olhar a risca que dividia a terra do céu, deixou que saissem as lágrimas e, acho que ainda hoje chora um pouco quando olha o fio do horizonte.






Balizas



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Era de manhã, estava uma manhã clara escondida atrás de um nevoeiro espesso. Estava atrasado, mas fui eu que assim o quis, a culpa era minha. A morte de um artista que se recusou a sê-lo, e deu um tiro na cabeça enquanto me culpava a mim.
Não fui á missa, não me sinto bem ali dentro. Pedem ao padre pelo arrependimento do filho, e o padre pede mais dinheiro. Lembra-se que o evento mais próximo cristão está a chegar e há postais que se podem comprar à porta. Que peguem eles no seu ouro, nos seus livros, na sua arte e a usem para o que dizem apregoar.
Fui ter ao cemitério, fui sozinho. Estacionei longe, queria andar a pé, preparar-me antes de entrar pelos portões velhos, com tons de musgo, húmidos e pesados. O nevoeiro cerrava-me a vista, só via uns metros à frente. Não admira que um rei se tivesse perdido ali.
O muro era grande, não dava para olhar lá para dentro, mas se o fizéssemos dávamos de caras com um futuro certo.
Lembrei-me de quando nos conhecemos, tinhamos dez anos, a turma era nova e ele sentou-se atrás de mim. Brincadeiras de escola, trabalhos em grupo, intervalos... Uma amizade com treze anos. Que saudades desses tempos tão inocentes, saudades das palavras do Pessoa.
“Pensava que não vinhas...” - perguntou-me ela, interrompendo-me o pensamento.
“Não queria vir...”
“Ainda bem que vieste.”
Sorrimos um sorriso demasiado triste para ser verdadeiro, fomos calados em direção aos portões. Acompanhámos os muros brancos, gastos e sujos. Pisámos o chão húmido, seco e cinzento. Passámos por pessoas que se desviávam por nós, sabendo no intímo que era em direção a um último adeus que caminhávamos.
Em frente aos portões estava um banco de rua, em tudo igual aos portões, menos na forma.
Afastei-me dela para me perder no nevoeiro e estar sozinho antes de entrar. Sentei-me. Pus as mãos na cara, comecei a chorar. Quanto tempo vai isto durar?
Do nevoeiro uma sombra pequena desceu rapidamente e aterrou, fez uns moviementos bruscos que tinham o chão como alvo. E subiu tão depressa como desceu. Eu sorri, a vida continuava aos meus olhos. Nem tudo estava perdido.

Descrição



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Rodearam-me com a curiosidade instintiva de animal, avançando como um tornado lento, até me engulirem por completo. Foi como se a morte me tivesse rodeado e perguntado qual a direção que gostaria de tomar. A luz que vinha de lá longe, e pedia que eu me arrependesse, ou o sentido contrário, um negrume obscuro, sem vida e estranhamente em paz.
Preferi ficar quieto, perdi-me no reflexo das escamas, que mostravam uma figura demasiado acanhada. Perdida num mundo que não era o seu.


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Na madrugada do dia 5 de Outubro de 1910, enquanto o Almirante Cândido dos Reis se suicidava ou se deixava matar em Arroios, nascia o meu avô noutro bairro de Lisboa, na Rua Pedro Dias. Na véspera, a sua mãe observava, da janela verde de guilhotina do quarto, um pardal a debicar um caroço de maçã caído na rua.
– Para a ralé, estas coisas dão sempre para o torto – protestou José, o seu marido.
– Deus cuidará.
Voltou para a janela e, contemplando o rio Tejo, apercebeu-se da mudança do tempo, das nuvens que, primeiro tímidas, se aproximavam, criando vultos fantásticos de dragões-sereia e cavalos-estrela. Depois, mais carrancudas e cinzentas, foram deixando cair umas gotas, aqui e ali, como que querendo limpar o sangue da cidade, mas sem coragem.
Então, Fátima sentiu o sangue que lhe escorria pela perna esquerda, como que a lambendo, e viu também o sangue das gerações que se seguiriam: o sangue do meu pai na Guiné e o meu sangue, hoje, aqui.
– Deus nunca cuida – respondeu.
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