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«Certa manhã, Lisboa acorda surpreendida com a presença de estranhos monólitos azuis espalhados pela cidade. Ninguém sabe de onde vieram, quem os trouxe e os colocou, nem porquê. São dezenas. As televisões abrem com directos frenéticos e entrevistas às primeiras testemunhas (noctívagos e homens do lixo). Nas redes sociais especula-se sobre o significado daquilo. Os ufologistas esfregam as mãos. Há quem faça mapas tentando identificar padrões. Pululam as teorias da conspiração. Entretanto, as autoridades isolaram os "achados".
A vossa história começa uma semana depois da descoberta. Ainda ninguém tem respostas para o mistério. O que se passa afinal em Lisboa?»


Os blocos azuis haviam transformado o mapa turístico de Lisboa, atraindo multidões às ruas estreitas do Martim Moniz e esvaziando o Chiado e a Rua Augusta. Ainda assim, se alguns habitantes se fecharam preventivamente em casa, se tantos outros se entregaram a suposições febris, muitos outros houve que continuaram com as suas vidas, evitando apenas passar nos cruzamentos com aquilo. Era este o caso da família Ferreira.
Não se pode dizer, no entanto, que a vida continua quando um filho deixa de falar. Aconteceu num sábado à tarde, quando a mãe foi pedir fósforos à vizinha e deixou a Matilde sozinha em casa. Quando regressou, a pequena estava sentada no chão, com o olhar perdido na parede branca. Ficou vários dias ali e, com o tempo, os seus olhos castanhos foram ficando mais claros, cada vez mais claros, até se tornarem azuis cristalinos da cor do mar em dias de céu varrido e, depois, esbugalhados como os olhos dos peixes na lota.
A decisão dos pais foi unânime e, numa noite em que o fumo dum cigarro se confundiria com o próprio nevoeiro, deixaram-na ao lado do bloco da Praça do Chile. No carro, sentiram o solo estremecer. Onde Matilde estava sentada, uma espiral de arco-íris irrompeu do centro da Terra e, atingindo o outro lado do Universo, transportou consigo a menina para um mundo de gnomos e seres esvoaçantes e com olhos de peixe. O ar confundia-se com a água, a água com a terra, a terra com o fogo e tanto se podia dormir numa fogueira como num bloco de gelo. Na língua daquele mundo, não existia tempo – presente, passado ou futuro – nem distinção entre andar, nadar ou voar se para todos estes verbos se dizia a palavra ujig, que significa «deslizar descobrindo».

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