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Escolhi ir durante a monção. 
Foi uma escolha se considerarmos que tudo o que fazemos é uma escolha. A verdade é que aquela era a única altura em que poderia ir; encaixaram os meus dias nos dias da viagem. Não quis nem tentei saber mais nada e, de planeado, só levei a mochila. Daqui para a frente a viagem seria feita dentro de um filho de pais que nunca supos poderem procriar: motor e parte dianteira de um camião de cimento soldado a um autocarro, adaptado a levar viveres, água potável num tanque, ferramentas, mochilas, material de campismo: um colosso em pneus.
A estrada começa de manhã, sinuosa, estreita mas suficiente para dois veículos de grande porte se cruzarem lado a lado, no limite do razoável, em espaço e em velocidade. Demora-se a viagem em curvas, contracurvas, desfiladeiros numa vertigem de verde e a ansiedade, minha, de ver outro veiculo a aproximar-se em sentido contrário. Começa a chover quando entramos na fronteira do Nepal com a India. Eramos 10 num camião, a percorrer estradas de terra, lugares de casas baixas e de uma divisão só, campos de verde até o horizonte, longe do que vem desenhado no mapa. O camião tem um procedimento administrativo diferente do nosso o que nos obriga a sair para a lama, pedras, entulho e lixo até ao posto de controlo: um papel e um carimbo para sair do Nepal. Mais à frente – gente que se acotovela, pedras e entulho, uma sopa que sinto debaixo dos pés quase nus, limpos de vez em quando pela chuva – novo posto de controlo: um papel e um carimbo para entrar na India: uma mesa corrida com 7 funcionários, numa espécie de alpendre e tenho de emprestar a minha caneta. Utilizo a palavra controlo mas pareceu-me, a dada altura e porque não faço barulho com os pés, porque a roupa que vestia não tinha muita cor e era simples e porque a cor de pele e do cabelo podem ser tão indianos como os que cá estão, que dei por mim a pensar que poderia passar sem nenhuma formalidade.

- O que escrevo aqui? - o meu inglês parece servir aqui, onde não se fala só com a voz. Acena-me com a cabeça num gesto que não decifro – É necessário escrever a morada? - não quero parecer ansiosa ou levantar a voz mas se ele não me entende agora vou atrasar o carimbo de que preciso no passaporte. Esbugalho os olhos e aponto com insistência para a linha no formulário, alternadamente e numa tentativa de completar a minha pergunta. O chocalhar de cabeça que fazem é tão revelador como uma burka.
- O nome do hotel serve. - neste canto do mundo não senti que as respostas fossem dadas por simpatia ou cordialidade mas por uma tolerância a quem aparece.
- É preciso mais alguma coisa? - depressa temos os carimbos necessários e tentamos sair dali.
- Vamos andando para a frente. É preciso almoçar antes de continuarmos.

A quantidade de gente que pássa na rua, em todos os sentidos e em todos os tipos de meios de transporte, é inverosímel. Chego a temer pelos meus pés a dada altura; sinto a poeira a consolidar-se na roupa, no cabelo e na pele o que me obriga a olhar apenas o chão para ver por onde ando e a encostar-me, rente, aos edifícios. Não há, em lugar nenhum, um único sinal de trânsito e o alcatrão determina onde é a estrada porque o resto são pedras, areia e lixo até ás portas dos edificios. O camião vai demorar mais um pouco por isso escolhemos um sitio para almoçar. Temos de deixar de pensar – se foi lavado o prato e o copo, de onde vieram os talheres, como me vou sentir se comer o pão amassado e frito naquele momento, ao pé de uma porta aberta, com umas mãos escuras, de pele e de pó.
Ainda sinto a distância de cá chegar. Ainda me sinto longe, tenho de me esperar chegar, como no Toubkal, onde só cheguei depois de descer a primeira montanha. Diziam-me, uns dias depois, que a alma demora um pouco mais a chegar ao destino onde a cabeça chega agarrada ao corpo – talvez seja isso que sinto. A paisagem, a comida e a língua com que tenho de me expressar sempre, é contrária a mim. Senti-me num esforço em fazer coincidir as palavras com o que queria dizer e acabei por dizer menos e sentir mais.
De tudo, sobraram fotografias e sensações que já pouco coincidem com o que aconteceu.  


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