0 colheradas

Na madrugada do dia 5 de Outubro de 1910, enquanto o Almirante Cândido dos Reis se suicidava ou se deixava matar em Arroios, nascia o meu avô noutro bairro de Lisboa, na Rua Pedro Dias. Na véspera, a sua mãe observava, da janela verde de guilhotina do quarto, um pardal a debicar um caroço de maçã caído na rua.
– Para a ralé, estas coisas dão sempre para o torto – protestou José, o seu marido.
– Deus cuidará.
Voltou para a janela e, contemplando o rio Tejo, apercebeu-se da mudança do tempo, das nuvens que, primeiro tímidas, se aproximavam, criando vultos fantásticos de dragões-sereia e cavalos-estrela. Depois, mais carrancudas e cinzentas, foram deixando cair umas gotas, aqui e ali, como que querendo limpar o sangue da cidade, mas sem coragem.
Então, Fátima sentiu o sangue que lhe escorria pela perna esquerda, como que a lambendo, e viu também o sangue das gerações que se seguiriam: o sangue do meu pai na Guiné e o meu sangue, hoje, aqui.
– Deus nunca cuida – respondeu.

1 nascimento, 1 morte, 1 pássaro, referência de meteorologia, descrição de paisagem, diálogo e acontecimento histórico



0 colheradas
Uma estranha frente fria de verão empurrava o corpo de dentro para fora. As pernas afastadas, poisadas no ar, construíam um caminho de espaço que depressa se revelou apertado para a cabeça daquele que um dia seria nunca menos do que cinco. Fernando passou e todos o agarraram, abraçaram e confirmaram desejar por não saberem que nunca iam compreendê-lo. Depois nasceram Álvaro, Alberto, Ricardo e Bernardo mas ninguém deu por nada nem deu nada por eles. Pelo menos naquele dia, naquele quarto com a janela aberta para um largo no chiado onde as cinco árvores nunca teriam folhas suficientes para tudo o que ele(s) ia(m) escrever. E os pássaros, que parecem perceber mais da natureza humana do que as pessoas, gritavam de ramo em ramo
- O primeiro livro é para os pardais.
Anos mais tarde o poeta enganava-se a si próprio para não dar nada às aves que o viram nascer e respondia-lhes:
- Sei de sobra que nunca terei uma obra.
Uma estranha frente quente de inverno empurrou o corpo de fora para dentro. A terra estava húmida da chuva, da rega e das lágrimas de quem fez o caminho antes. Os poucos amigos disseram adeus a um e as árvores do cemitério despediram-se de cinco. Desde então deixaram de ter razões para dar folhas e o inverno ficou ali, a adormecer para sempre um sonho:
- Enquanto dura esta hora, este luar, estes ramos, esta paz em que estamos, deixem-me crer o que nunca poderei ser.


1 colheradas

Acordei preocupada com as minhas unhas e as peles à volta. Não era para menos: era o dia do meu casamento e, como qualquer noiva, queria estar perfeita. Ainda havia as unhas e as peles à volta para tratar, o penteado, a maquilhagem e muitos outros pormenores. Deitada na cama, soterrada em pensamentos e preocupações, ouvi o telemóvel. Era o Sr. António, o homem do restaurante.
- Menina Rita, tenho uma péssima notícia.
Silêncio.
- Diga, diga.
- Faltou a electricidade durante a noite toda e a comida fria ficou estragada: o marisco, as sobremesas, as carnes, o peixe, praticamente tudo. É um desastre.
Engoli.
- Achei por bem avisá-la já.
- Claro. Obrigada.
Caímos ao chão, primeiro o telemóvel e depois eu.

O insuperável para uns é um desafio para outros. A minha mãe é enfermeira e adora emergências. Antes de eu recuperar a consciência, já tudo estava resolvido. Iria partilhar o copo d’água com outro casal, no restaurante do primo do Sr. António, incapaz de recusar o desconto de 50%.

Um blogue



0 colheradas
Um blogue que vale muito a pena.


0 colheradas
A terra amarela, enxugada de meses sem chuva, cobre-se apenas de sombras que anoitecem. Ao longe, a linha que divide o chão do resto, ondula a cada passo arrastado, e o resto apequenou-se no tamanho, de tão longe que ainda é; só a tarântula que me sobe a perna é grande e insuflada - os olhos de perto e os de longe, confundem-se quando se caminha em terras secas e largas como esta.
É preciso caminhar, ao ritmo de ponteiros, todo o dia para se chegar à linha ao longe. Ainda assim, mesmo depois do castigo de vergastadas do sol um dia inteiro, só se chega perto da noite, debaixo da ameaça cumprida, de chuva; não se consegue pensar em nada dos joelhos para cima.
É lá, na linha ao longe, que já de noite e debaixo de chuva miudinha, anunciadora da borrasca, que se procura abrigo nas rochas e se espera pelo sol seguinte.



medo!



1 colheradas

uma mulher na orelha



0 colheradas
As linhas retas não encontravam espaço nela. As curvas entonteciam pelos tornozelos, pernas e coxas. Gritavam nas ancas e continuavam pelo peito até ensurdecerem a orelha, em voltas perfeitas. Na mão segurava um búzio que se distinguia com dificuldade nas curvas e contra curvas que se misturavam entre o preto da concha e o branco da orelha. Talvez uma volta a menos e fosse ao contrário: a orelha preta e a concha branca. O importante era ouvir o mar e tapar os ouvidos aos assobios dos homens, que avançavam tirando um pé do chão de cada vez sem nunca tirarem os olhos dela, e a quem, só por respeito a si própria, não mandava dar uma curva.

Excerto da música "No Church In the Wild" (Kanye West)



0 colheradas
Human beings in a mob...
What's a mob to a King?
What's a King to a God?
What's a God to a Non Believer,
Who don't believe in anything?
We'll make it out alive...
Alright, alright, no church in the wild.

mania das grandezas



0 colheradas

O porco queria ser mais forte e por isso queria ser javali.
O gato queria ser mais corajoso e por isso queria ser pantera.
O pássaro queria ser mais respeitado e por isso queria ser águia.
O menino queria ser mais forte, corajoso e respeitado e por isso não queria ser homem.



Queria ser menino grande.


0 colheradas
A última entrevista de Philip Roth pode ser lida aqui.

Bolo de nozes e canela



0 colheradas

Naquela manhã de terça-feira, não havia motivo para suspeitar que alguém iria morrer. Com a família reunida à volta da mesa rectangular, Arminda, de pé e um pouco inclinada para a frente, mais parecia um maestro, exigindo a cada músico que tocasse a sua partitura sem fífias. Mas também tinha um coração nobre, que se contorcia quando um filho caía, esfolando um joelho, ou havia uma arrelia. À cabeceira oposta, José, o marido, à sua direita, Ana e Maria, à sua esquerda, João e Manuel.
            A casa era simples, mas suficiente, pensava. Três quartos para seis pessoas: ela e o José num, as raparigas no outro, os rapazes no último. De resto, pouco tempo passavam em casa. Andavam de bicicleta, trabalhavam no campo, apanhavam amoras e figos no verão, marmelos e castanhas no Outono. A chuva escasseava.
            Naquele dia, Arminda levantou-se cedo, antes de todos, o sol ainda no horizonte. Haveria de ser um dia quente, já se sentia. Preparou o café com leite, habitual início de manhã. Mas se lhe tivessem dito que este seria um dia igual aos outros, não teria acreditado. Talvez um pressentimento, talvez uma picada no coração, quase imperceptível. Com a colher de pau, acabou o bolo de canela e nozes com a receita transmitida de geração em geração às mulheres da sua família.
            Agora, conduzindo cada elemento da sua orquestra, não compreendia a origem da dor que lhe queimava o peito. Estonteada, agarrou-se a ele, como se esse gesto a pudesse salvar e, nada sentindo, percebeu que era o fim.

Crónica «Sobre o Facebook, Face ou FB»



0 colheradas

Não tenho Facebook. Pronto, confessei. Precisamente, confessei. Porque, hoje, não ter Facebook é um crime equivalente ao de ter matado a mãe e o pai. E depois o cão. E o gato. Ok, não é assim tão mau, mas, além de mim, quem mais, em Portugal, não tem perfil no Face? Eu digo-vos: uns quantos psicopatas – e de certeza que há estudos que provam isto. O Cavaco Silva tem Face, o quiosque da esquina tem Face, o meu pai tem Face, os meus sobrinhos com mais de 7 anos têm Face. O que é que isto diz sobre mim? Que sou a salsicha no cachorro quente tecnológico: de um lado, uma geração que viu um computador pela primeira vez depois dos 50 anos e que se esforçou por se actualizar; do outro, os miúdos que praticamente nascem com um IPad na mão e que fazem deslizar o dedo indicador sobre o ecrã táctil como se a Humanidade nunca tivesse feito outra coisa.
            E depois estou eu, a autopromovida salsicha: informatizei-me conforme a necessidade, mas nunca com verdadeira paixão. A minha presença na Internet limita-se à conta de correio electrónico. Com efeito, criar uma conta gmail foi praticamente o auge da minha evolução tecnológica. E não chegava bem ir trocando uns e-mails durante o dia com os amigos? O problema é que há pessoas que já nem usam correio electrónico. Ainda há pouco tempo, perguntei a um colega de 19 anos (que ainda haja pessoas de 19 anos que falam comigo é um milagre) se poderia enviar-me duas ou três fotografias.
            – Ok, dá-me o teu Facebook – foi a resposta instantânea dele. Mais uma vez, como se a Humanidade nunca tivesse dito outra coisa. Não consigo descrever a sua expressão de choque quando revelei que não tinha FB.
            Mas não é que eu seja uma completa analfabeta tecnológica: trabalho oito e mais horas por dia ao computador, com vários programas que tiram do sério nove em cada dez pessoas, segundo as minhas estatísticas inventadas agora mesmo. Por isso, posso dizer que a minha aversão ao Facebook supera a inaptidão tecnológica. Na verdade, não vejo o interesse de partilhar todos os pensamentos e cada uma das 143 fotografias tiradas ontem na discoteca. Além disso, e se a pessoa errada descobre onde moro? Ou onde estou a passar férias?
            Evidentemente, há algo de paranóico neste meu medo: ninguém vai descobrir onde moro nem cortar-me às postas durante as férias. Ainda assim, não quero like, nem share, nem follow e muito menos comment a fotografia apaixonada do meu ex com a sua nova namorada.
            Mas o mais irritante do Face nem é o facto de lixar a vida social de quem não o tem. Já me mentalizei que não irei a este ou aquele jantar por não receber o convite pelo FB. Mas, quando me dizem que, sem perfil facebookiano, não tenho credibilidade profissional, colocam-me perante um profundo dilema. Ai... Ter ou não ter Face, eis a questão.

O Mundo Dá Voltas



0 colheradas

Não é que eu já tenha vivido imensos anos e presenciado imensas situações que me façam chegar a este tema, no entanto sinto, não como uma cidadã deste mundo, mas como uma pessoa que amanhã poderá ser alguém, que devo avisá-lo a si, caro leitor, e a outros interessados que o mundo dá voltas.
Ah, pois, mas isso já eu sabia, é o que provavelmente está a pensar.
Sim, meu estimado, sabia, mas muitas vezes (e não estou a dizer que você o faça) há quem se esqueça que essas voltas não são apenas literais, mas também figurativas. É que o jovem ignorante que limpa as escadas do seu prédio todas as tardes amanhã poderá ser o filho da mãe que ainda não lhe pagou o salário!
Ainda não chegou lá? Deixe estar que eu ajudo-o.
Com a crise que vai por aí, muitos são os jovens que se vêm forçados a trabalhar para conseguir pagar os estudos. Empregos como limpar escadas, limpar corredores de condomínios, fazer limpezas, trabalhar em restaurantes, enfim em todo o tipo de serviços que você não se imaginaria a realizar, são muitas vezes as melhores opções, quando em part-time, por se encaixarem muito bem na vida de um estudante.
A questão aqui é que as pessoas gostam de acreditar que quem tem estes empregos não tem objectivos, não pensa em estudos, não pensa em ser alguém nesta vida, mesmo que nunca tenham falado com os julgados. E por algum motivo (que tenho a certeza que me consegue explicar muito bem) acreditam-se superiores a estes gaiatos e tratam-nos abaixo de cão, reclamando de tudo o que fazem, gozando com eles, desconsiderando-os.
Agora provavelmente está a pensar que a prova de que estes jovens são ignorantes é que não respondem quando os ofende com palavras mais caras ou frases mais indirectas, não é? Eu cá acho que eles não respondem porque não querem perder os empregos, pois precisam deles para pagar os cursos… para amanhã serem alguém… porque o mundo dá voltas… e quem sabe amanhã, meu amigo, você seja ninguém… Não? Olhe que o mundo dá mesmo voltas…
Só lhe digo uma coisa, do jeito que o mundo roda, é bom que seja vidente antes de dar uma de superior para cima dos pobres coitados que se limitam a fazer pela vida. Já agora se o ofendi peço perdão pela forma rude como me dirigi a si, só estava a tentar fazê-lo perceber bem o meu ponto de vista. Isto é, peço desculpas, se o leitor não mora em Cascais, claro.

Notem-me



0 colheradas

Humanos! Acreditam que apenas eles importam, que apenas eles se importam. Os animais não pensam, não sentem. Os objectos são inanimados, não vivem, não sobrevivem. Então como, senhores humanos, explicam a minha vida, os meus sentimentos, os meus sofrimentos, as minhas alegrias e os meus desejos?
Foi um de vocês que disse “penso, logo existo”, pois eu digo-vos “existo, logo sinto”. Senti tudo o que me aconteceu e lembro-me de cada momento daquilo a que vocês não chamariam de vida! Os anos vão passando e cada vez mais penso no que fiz ao longo do tempo e como não aproveitei enquanto era jovem, pelo que decidi deixar algo por escrito, apenas para que saibam que eu existi, que eu estive aqui. Mas primeiro convém que me apresente.
Sou uma nota de vinte escudos que foi rasgada ao meio há tanto tempo que já nem se lembra do momento exacto em que aconteceu, tendo várias teorias para tal, no entanto não vos vou aborrecer falando das conjecturas de uma velha cansada.
 
Tenho trinta e quatro longos anos, que em vida humana é muito pouco, no entanto para uma nota é demasiado tempo. Eu não posso morrer, mas posso ser destruída e simplesmente deixar de existir. Não tenho alma, e acreditem ou não, neste momento o que eu mais desejo é que a metade de mim que ainda existe seja destruída, pois não acredito que possa ter descanso de outra forma.

Não me lembro dos meus primeiros dias de vida, como fui feita e o que envolveu a minha criação. Recordo o primeiro ano da minha existência como um dos mais ternos que já tive. O meu dono chamava-se Tomé, era um rapazola desdentado de seis anos, mãos quentes e olhar brilhante. Ganhou-me no seu aniversário e durante mais de um ano andou comigo no bolso de todas as calças que usava, dizia-me que eu era a sua nota da sorte. Ele conversava comigo todos os dias, contava-me histórias e dava-me beijinhos, não me tratava como todos os outros, ele importava-se comigo, ou ao menos era assim, até me ter trocado por um pote de feijões doces.
Das mãos suadas do velho vendedor da lojinha de guloseimas, vislumbrei a cara feliz do garoto, que lambia os beiços ansioso por provar os feijões. Numa mão tinha duas notas e algumas moedas e noutra o pote pelo qual me trocara. Não me lançou um olhar de pena sequer, não me pediu desculpa, nem sequer se apercebeu de que me magoou.
 
Deixou uma mágoa tão grande no meu, diria coração, mas dou-me conta agora de que não tenho um. Enfim, magoou-me tanto que aqui estou eu, trinta e sete anos depois, a escrever esta história com a esperança de que ele a leia e saiba que apesar de tudo, mesmo depois de ter conhecido literalmente milhões de pessoas e de ter feito o sorriso de milhares de crianças, eu continuo a lembrar-me dele, continuo a amá-lo, porque é impossível ficar tão magoada como eu fiquei se não se ama como eu amei.

Medos



0 colheradas
Encolhia-se e acreditava que o som de botas no asfalto não o assustaria, se nunca tivesse sentido o peso de umas a cortar-lhe o ar.

Querias ou queres? - Uma crónica



0 colheradas

Queria um café, por favor.


Queria? Já não quer?
Não acham que já chega? Quando eu chego ao café e digo “queria um café “ ainda o quero, estou só a ser simpático. Estou a fazer três coisas ao mesmo tempo, poupando o nosso tempo, o meu e o seu.
A primeira, é pedir um café para mim, de modo a que possa receber uma injeção de cafeína que tantas vezes preciso.
A segunda, é fazê-lo de modo simpático, agradável. Queria um café é o mesmo que dizer “queria, assim que lhe for possível, um café”. Em vez de entrar no seu estabelecimento e quase que exigir um café: “quero um café, pá!” - parece que o que devia fazer era entrar aos berros pelos cafés a dentro e exigir ser servido. Não me parece que seja o modo mais certo.
A terceira, é evitar pedir “quero um café!” porque pedir um café é aparentemente mais difícil do que eu antecipei, se eu disser “queria” tenho de levar com a boquinha, e depois tenho de responder com um sorriso e dizer: “quero, tem toda a razão...” e por sua vez o senhor responde com um “aaaah!” do tipo “apanhei-te!”, feliz da vida. E quando esta história acaba já perdemos os dois tempo, na maioria das vezes o senhor esquece-se do que eu pedi e tem de repetir para ter a certeza. “Um cafézinho então, não é?” Eu aceno afirmativamente e se Deus quiser tenho o meu café.
Se eu disser “quero!”, e não lhe deixar apanhar-me, levo com um olhar de pouco amigos e estraga-me o café por inteiro e ainda sou mal servido.
Se isto me acontecesse uma vez por dia, não me incomodava muito, mas eu preciso de muitos cafés por dia, e depois de muitos anos a beber muitos cafés fico cansado de tentar adivinhar a maneira como pedir uma coisa tão simples como um cafézinho. E como fico cansado, preciso de outro, e isto torna-se um ciclo vicioso.
A minha sugestão é que pusessem um cartaz no vidro, ou à entrada, quando digo cartaz refiro-me às folhas de papel de mesa coladas nos quatro cantos com fita cola, que muitas vezes dizem “há caracóis” e depois desenham um caracol ao lado, no caso de alguém não saber o que são caracóis.
Assim, pegavam numa folhita dessas e escreviam “aqui só se serve no presente” ou “aqui só se serve no imperfeito” e assim eu já sabia a maneira como havia de pedir o café.
É natural que as pessoas digam que não têm tempo para nada, se passamos os dias a perder segundos neste tipo de coisas. Imaginemos o que podíamos fazer com os segundos que perdemos a discutir se queremos ou queríamos o quer que seja.
Podemos decidir se o queremos ou não mais uma vez, podemos ler “as gordas” dos jornais, podemos olhar rapidamente para alguma senhora bonita que por ali passe, podemos ver o resultado do jogo, podemos ver se estamos atrasados ou não, podemos ir acendendo o cigarro, etc. e tal.
Podemos, portanto, andar com a vida para a frente.
São estas pequenas coisas que nos custam uma vida, porque uma coisa é ir com calma, outra coisa é perder tempo. E perder tempo já o fazemos à tempo de mais.
Portugal, quer ou queria pagar a dívida, quer ou queria estar na Europa. A Europa, quer ou queria estar mais unida.
Enquanto não puserem um cartaz à entrada, ninguém se vai entender e eu não hei-de saber como pedir o que preciso para mim.

O relógio bateu as horas



0 colheradas

O relógio bateu as horas à hora marcada.
Quinze graus de espaço e uma hora de tempo entre a que passou e a hora de agora.

Estou atrasada.
Queria ter saído antecipada para garantir que chegaria a tempo. Tinha pensado aparecer antes da hora e esperar; ter-me-ia dado tempo para pensar. Agora terei de dizer de improviso e sei que as palavras se vão atrapalhar antes de saírem da boca. Não tens ideia das vezes em que ensaiei, acrescentei e modifiquei o discurso em frente do espelho.
Queria que me visses como aquilo que sempre gostaria de ter sido – articulada, ponderada e firme. Mas vou chegar tarde. Com o atraso vou chegar à pressa e a primeira coisa que direi será uma desculpa. Não era isso que queria dizer em primeiro lugar até porque não há nenhum pedido de desculpa no meu discurso e isso vai misturar-me os pensamentos e as palavras à beira da boca. Queria chegar de cabeça levantada, firme, articulada e ponderada.
Combinei o lugar em que nos encontraríamos e a marquei a hora sem pensar no relógio. Este relógio – uma caixa alta de madeira recortada que serve de moldura e de corpo a entranhas feitas de parafusos e rodas dentadas. E um movimento pendular infalível, imparável, dirigido por Coriolis e guiado pelo centro da Terra.

Vou chegar atrasada.
Agora terei de sair a correr. Vou aparecer com o cabelo desalinhado, a agarrar o casaco e a mala, numa marcha desengonçada até ao ponto de encontro.
Treinei as palavras para que compreendas tudo o que tenho e preciso de te dizer. Tenho até uma urgência em que saibas o que quero falar-te porque é importante. Porque só depois de dito a ti terá forma e será real porque seremos dois a saber. Não posso fingir que quando tenho o coração todo misturado, de tantos sentires diferentes, as palavras me saiam direitas e por ordem. Agora terei de, também eu, aceitar que o que direi será confuso até para mim e que me farás, naturalmente, perguntas se quiseres compreender.

Olho novamente o espelho. Vesti este vestido que nunca viste, calcei os sapatos de salto inusitados em mim, penteei o cabelo num nó atrás da cabeça e maquilhei-me. Sou por fora composta, firme, articulada e ponderada. Devia estar preocupada com o tempo que passa mas olho-me outra vez, confirmando-me.

O relógio bate a meia hora e saio.

13-12-2011


Das coisas em ponto pequenino (exercício de crónica)



0 colheradas

Tive de parar para saborear a frase toda: "são as batatinhas fritas, dois pãezinhos e um suminho"; assim, de rajada. Ao terceiro diminuitivo apaguei-me, ou por outra, encolhi-me porque devia ter chegado a Lilliput.
Nada daquilo era em miniatura porque olhei para o saco ostencivamente, mas a senhora referia-se ao seu conteúdo sem os óculos do Magoo. Ocorreu-me que seria um expediente para baixar o preço – perfeitamente aceitável depois de se ver um resumo de um qualquer noticiário. A lógica deve ser, digo eu, a de que se se diminuir o tamanho da coisa, a coisa fique tão pequena que diminua também o peso e o valor. Uma despromoção dos objectos que os torne corriqueiros e sem importância de maior porque "sou muito modesto nas minhas compras".

Uma coisa diferente acontece quando se diz "o coitadinho" – outra pérola em ponto pequeno, ouvida amiúde. O objectivo não é diminuir, em tamanho, o objecto alvo da adjectivação, para comprar mais barato. É, paradoxal e umbilicalmente, aumentar e publicitar (que essas coisas não se dizem para dentro) a beatitude de quem o diz. Santinhos de pau oco porque desta observação não sai nada de valor – nem saúde, nem dinheiro, nem amor de mãe -, apenas um apontar de dedo inconsequente e até insultuoso, de quem se roga o direito de dizer acerca da vida que lhe passa ali perto, porventura menos abonada ou feliz que a sua. E depois passar em frente, sem outro contributo para a caixinha de esmolas que não seja esse, o adjectivo. Apenas com a consciência tranquila (?) de que se viu a desgraça, que se sabe que ela existe e que os outros em redor também sabem que se sabe.

Já o "favorzinho" ou o "minutinho" são uma espécie de sorrateirice, um lobo com capa de capuchinho vermelho. Adivinha-se rapidamente o que dali vem: borlas, porta de cavalo, cunha ou até, ajuda num meio de contornar devagarinho (lá está, não foge ao tema) os trâmites da coisa. Até se consegue ver, se olharmos com atenção, os ombros encolhidos e o pescoço arqueado para baixo, a reter o som do que se pede baixinho.

Das três versões de Lilliput (haverão outras certamente), todas me dão arrepios nos cabelos da nuca. Em todas há uma miopia que se recusa a usar óculos.


Meta-crónica



0 colheradas

Meia Nota de 20 Escudos



0 colheradas


0 colheradas
Pesquisando para a escrita da minha crónica li esta Exemplos Terminais de João Pereira Coutinho que não resisti a partilhar.

Até já.

Meia história



1 colheradas

Tudo começou num bolso. Não era grande nem pequeno, as calças não eram de fazenda grossa nem de seda fina e nem sequer estava descosido. O bolso desta história não tinha história nenhuma até aos meus pais lá cairem. Foi então que passou a ser digno de nota.
Primeiro foi o meu pai. Uma nota de 50 escudos cheia de si e sem vincos que ocupava o bolso com a impunidade de quem pode comprar o mundo. Segundo ele, fora guardado de forma provisória, antes de fazer parte de um grande investimento.
A minha mãe chegou logo depois. Caiu no bolso à saída da mercearia. Ela era o troco, estava riscada e nitidamente tinha outros valores: era uma moeda de 50 centavos.
Ele sempre se tinha achado melhor do que todos, ela sempre se tinha sentido a sobra de ninguém. Talvez pela falta de espaço e de companhia, ou simplesmente pelo balanço das passadas, acabaram por se apaixonar. Para ela, ele era um investimento com futuro; para ele, ela era tudo o que sempre tinha ouvido dizer do amor – um investimento a fundo perdido. E eu fui, para eles e para o mundo, um triste acaso da numismática.
Quando nasci o meu pai amassou-se e gritou à minha mãe:
- Não vale nada, tal como tu!
A minha mãe, que era de ferro, nem se dobrou com o insulto. Limitou-se a dizer:
- É mais parecido contigo do que comigo.
E gritavam sem olhar para mim. Meia nota de 20 escudos acabada de nascer num bolso igual a tantos outros. Redonda e quase sem cantos como a minha mãe, de papel como o meu pai. Sem o valor de um nem a resistência do outro. Imprestável para os dois.
Durante anos andei de bolso em bolso e de mão em mão à espera que me dessem valor. Pelo menos 10 escudos a minha matemática aplicada ao orgulho exigia. Mas isso nunca aconteceu. Até na missa, o sacristão com o cesto do ofertório para a mão que tentou largar-me a Deus:
- Também pedes meio milagre?

Contos gratuitos



1 colheradas
Contos de autores portugueses gratuitos com o DN - TV & Media - DN

Encontrei por acaso esta iniciativa ao ir até ao site do DN. Por troca pelos nossos mails, uma vez que é obrigatório fazer um registo, oferecem contos de vários autores portugueses.

Até já.


1 colheradas
Ida e Volta

Cego, trabalha a alinhar as barras de madeira, em linhas paralelas, fechadas a parafusos de rosca soberba. Todos os dias, a cara no chão e as mãos de ferrugem, constrói o plano do engenheiro. Amanhã, ainda não sabe, sai o comboio e vai ficar para trás; operário de um caminho que não vai andar. 


 foto: Sebastião Salgado


1 colheradas


Não existe nada de completamente errado no mundo, mesmo um relógio parado, consegue estar certo duas vezes por dia.

                                                                                                                   Paulo Coelho


0 colheradas

Não sei quantas almas tenho

Não sei quantas almas tenho.
Cada momento mudei.
Continuamente me estranho.
Nunca me vi nem acabei.
De tanto ser, só tenho alma.
Quem tem alma não tem calma.
Quem vê é só o que vê,
Quem sente não é quem é,

Atento ao que sou e vejo,
Torno-me eles e não eu.
Cada meu sonho ou desejo
É do que nasce e não meu.
Sou minha própria paisagem;
Assisto à minha passagem,
Diverso, móbil e só,
Não sei sentir-me onde estou.

Por isso, alheio, vou lendo
Como páginas, meu ser.
O que segue não prevendo,
O que passou a esquecer.
Noto à margem do que li
O que julguei que senti.
Releio e digo: "Fui eu ?"
Deus sabe, porque o escreveu.

                   Fernando Pessoa


1 colheradas

O que a memória ama, fica eterno.
Te amo com a memória, imperecível.

                                          Adélia Prado


1 colheradas

" Ninguém é de uma raça. As raças são fardas que vestimos "

A HUMANIDADE



0 colheradas

"Sou o único homem a bordo do meu barco
Os outros são monstros que não falam,
Tigres que amarrei aos remos,
E o meu desprezo reina sobre o mar

[ ...]
E há momentos que são quase esquecimento
Numa doçura imensa de regresso
A minha pátria é onde o vento passa,
A minha amada é onde os roseirais são flor,
O meu desejo é o rastro que ficou das aves,
E nunca acordo deste sonho e nunca durmo.

                              Sophia de Mello Breyner Andresen

aforismo à hora de jantar



1 colheradas
O garfo e a faca estão à mesa melhor que muita gente. Recomendo um estágio na gaveta dos talheres.

Da respiração



0 colheradas
“A literatura não permite caminhar, mas permite respirar”. Roland Barthes
newer post

Procurar