0 colheradas
Caminhava em direcção a casa, a meio da terceira noite sem dormir. Não pensava em nada. Sentia-se exausto de vida e de ideias e só queria sentar-se um pouco. Ás horas perdeu-lhes o conto mas estava demasiado frio e a rua demasiado deserta para ser cedo. A recordação de Isabel, como uma fotografia, não lhe saía da cabeça. Tinha olhado, falado, tocado nela; foram tantas as vezes naqueles três dias mas, ainda agora, se surpreendia. A casa estava fria – tinha deixado uma janela entreaberta – e a loiça na bacia cheirava mal. Mas só conseguiu sentar-se e apenas por um momento. Acendeu um cigarro no escuro e perdeu o olhar na chama do fósforo até se queimar. De todos os casos que investigou, este ficaria marcado na cicatriz – ainda fresca – que ardia no tronco. Escostou-se lentamente ao espaldar da cadeira para evitar a guinada de dor e bafurou outra vez o cigarro. Isabel não existia em nenhuma das ideias, feitas ou por fazer, que tinha das mulheres ou até mesmo de gente. O movimento firme, calculado e limpo com que se abre uma garganta, definiu-o ela. A brancura da sua pele, nunca a viu suja ou tingida, enrugada ou com alterações de temperatura, o gingar da passada era certo e falava sempre sem inflexões na voz – constante, glacial, hipnótica. Cada cabeça que deixou exangue, deixou-a também serena e algumas com olhos que pareciam suplicar por mais. E cada uma, disse-lhe ela finalmente, foi como uma respiração que precisasse de fazer. Nunca, em toda a sua vida, vivida entre escroques e homicidas, conhecera alguém como ela. Tinha saído a tempo da esquadra onde a interrogou pela última e esclarecedora vez; perto do fim tinha sentido um anzol a puxá-lo para perto das mãos dela – quietas, brancas, suspensas – e, se ficasse mais tempo, teria pedido que lhe cortasse a garganta a ele também. Ficaria, também ele e finalmente, sereno.



0 colheradas:

Enviar um comentário

newer post older post

Procurar