Meia história



1 colheradas

Tudo começou num bolso. Não era grande nem pequeno, as calças não eram de fazenda grossa nem de seda fina e nem sequer estava descosido. O bolso desta história não tinha história nenhuma até aos meus pais lá cairem. Foi então que passou a ser digno de nota.
Primeiro foi o meu pai. Uma nota de 50 escudos cheia de si e sem vincos que ocupava o bolso com a impunidade de quem pode comprar o mundo. Segundo ele, fora guardado de forma provisória, antes de fazer parte de um grande investimento.
A minha mãe chegou logo depois. Caiu no bolso à saída da mercearia. Ela era o troco, estava riscada e nitidamente tinha outros valores: era uma moeda de 50 centavos.
Ele sempre se tinha achado melhor do que todos, ela sempre se tinha sentido a sobra de ninguém. Talvez pela falta de espaço e de companhia, ou simplesmente pelo balanço das passadas, acabaram por se apaixonar. Para ela, ele era um investimento com futuro; para ele, ela era tudo o que sempre tinha ouvido dizer do amor – um investimento a fundo perdido. E eu fui, para eles e para o mundo, um triste acaso da numismática.
Quando nasci o meu pai amassou-se e gritou à minha mãe:
- Não vale nada, tal como tu!
A minha mãe, que era de ferro, nem se dobrou com o insulto. Limitou-se a dizer:
- É mais parecido contigo do que comigo.
E gritavam sem olhar para mim. Meia nota de 20 escudos acabada de nascer num bolso igual a tantos outros. Redonda e quase sem cantos como a minha mãe, de papel como o meu pai. Sem o valor de um nem a resistência do outro. Imprestável para os dois.
Durante anos andei de bolso em bolso e de mão em mão à espera que me dessem valor. Pelo menos 10 escudos a minha matemática aplicada ao orgulho exigia. Mas isso nunca aconteceu. Até na missa, o sacristão com o cesto do ofertório para a mão que tentou largar-me a Deus:
- Também pedes meio milagre?

1 colheradas:

Lurdes Monteiro at: 9 de novembro de 2012 às 11:43 disse...

'meio milagre' - Gosto! :)

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