Humanos! Acreditam que apenas eles
importam, que apenas eles se importam. Os animais não pensam, não sentem. Os
objectos são inanimados, não vivem, não sobrevivem. Então como, senhores
humanos, explicam a minha vida, os meus sentimentos, os meus sofrimentos, as
minhas alegrias e os meus desejos?
Foi um de vocês que disse “penso, logo
existo”, pois eu digo-vos “existo, logo sinto”. Senti tudo o que me aconteceu e
lembro-me de cada momento daquilo a que vocês não chamariam de vida! Os anos
vão passando e cada vez mais penso no que fiz ao longo do tempo e como não
aproveitei enquanto era jovem, pelo que decidi deixar algo por escrito, apenas
para que saibam que eu existi, que eu estive aqui. Mas primeiro convém que me
apresente.
Sou uma nota de vinte escudos que foi
rasgada ao meio há tanto tempo que já nem se lembra do momento exacto em que
aconteceu, tendo várias teorias para tal, no entanto não vos vou aborrecer
falando das conjecturas de uma velha cansada.
Tenho trinta e quatro longos anos, que em
vida humana é muito pouco, no entanto para uma nota é demasiado tempo. Eu não
posso morrer, mas posso ser destruída e simplesmente deixar de existir. Não
tenho alma, e acreditem ou não, neste momento o que eu mais desejo é que a
metade de mim que ainda existe seja destruída, pois não acredito que possa ter
descanso de outra forma.
Não me lembro dos meus primeiros dias de
vida, como fui feita e o que envolveu a minha criação. Recordo o primeiro ano
da minha existência como um dos mais ternos que já tive. O meu dono chamava-se
Tomé, era um rapazola desdentado de seis anos, mãos quentes e olhar brilhante.
Ganhou-me no seu aniversário e durante mais de um ano andou comigo no bolso de
todas as calças que usava, dizia-me que eu era a sua nota da sorte. Ele
conversava comigo todos os dias, contava-me histórias e dava-me beijinhos, não
me tratava como todos os outros, ele importava-se comigo, ou ao menos era
assim, até me ter trocado por um pote de feijões doces.
Das mãos suadas do velho vendedor da
lojinha de guloseimas, vislumbrei a cara feliz do garoto, que lambia os beiços
ansioso por provar os feijões. Numa mão tinha duas notas e algumas moedas e
noutra o pote pelo qual me trocara. Não me lançou um olhar de pena sequer, não
me pediu desculpa, nem sequer se apercebeu de que me magoou.
Deixou uma mágoa tão grande no meu, diria
coração, mas dou-me conta agora de que não tenho um. Enfim, magoou-me tanto que
aqui estou eu, trinta e sete anos depois, a escrever esta história com a
esperança de que ele a leia e saiba que apesar de tudo, mesmo depois de ter
conhecido literalmente milhões de pessoas e de ter feito o sorriso de milhares
de crianças, eu continuo a lembrar-me dele, continuo a amá-lo, porque é impossível
ficar tão magoada como eu fiquei se não se ama como eu amei.
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