exercício dos contrários



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HÁBITOS CONTRA A CORRENTE

O cais estava a preto e branco. Visto de uma nuvem parecia coberto de pedras de calçada, visto das ondas do rio parecia coberto por peças de um jogo de damas sem regras. De perto descobriam-se centenas de freiras amontoadas em lágrimas. Olhavam para um barco pronto a partir e os seus olhos, a ondular, perguntavam se, todas juntas, teriam força para ser âncora.
Com as botas pretas poisadas no cais e o fato azul e branco suspenso sobre a água, um marinheiro fazia os últimos preparativos para que a viagem fosse de paz. Com uma mão apoiava-se na proa e com a outra segurava uma cruz feita de cordas com que batia 3 vezes no casco. Uma pelo Pai, outra pelo Filho e outra pelo Espírito Santo - enquanto se interrogava do porquê de um gesto habitualmente partido em quatro para representar uma unidade sempre partida em três. Desejou compaixão cristã a bordo e que fossem capazes de andar sobre as águas como Jesus. Era tudo o que a sua fé da escola primária com catequese obrigatória lhe permitia pedir a Deus no céu e era muito mais do que aquilo que a sua vida sempre no mar lhe permitia pedir a quem quer que fosse na terra.
No convés, dezenas de padres arregaçavam as mangas da batina, prendendo-as entre o cotovelo e os bícepes adormecidos, alargavam o colarinho romano respirando com uma liberdade que já não era sua e preparavam-se para dar início aos trabalhos a bordo. Olharam para as velas caídas no chão, ajoelharam-se perto delas mas não lhes tocaram e, sem se mexerem, içaram as almas enquanto esperavam que o barco partisse. Sem distinguirem a proa da popa o destino era o que Deus quisesse.
 As freiras no cais choravam e benziam-se. Sabiam que, mesmo sem terem sido noivas, seriam viúvas dos homens e de Deus ao mesmo tempo. Iam deixar de ter quem as salvasse nos arranjos diários do convento e do espírito – e principalmente das rasteiras do coração e do corpo a que a fé as obrigava a chamar provações da alma. Os seus pensamentos tombavam de um lado para o outro da cabeça ao ritmo da mão que dançava triste com o lenço branco. Era o adeus de Deus.
Mas o barco não partia. As lágrimas delas demoravam mais a cair e já não deslizavam pela cara, prendiam-se no rasto das anteriores e o desgosto tornava-se peganhento. Tudo parecia suspenso, à espera de um milagre, enquanto do convés mergulhavam conversas soltas:
    -       Tenho fé que o vento vai mudar.
-    Ainda nem saímos do rio e eu já só penso  em Moisés para separar os mares.
Os padres sabiam que Deus ia olhar por eles na viagem e isso abrandava o sopro do medo. Mas as freiras eram mais, sofriam mais e rezavam com mais força. E assim o Pai pregou uma partida aos filhos não os deixando partir. Mandou descer todo o nevoeiro sobre o rio e soou a sirene. Os padres abandonaram o barco, as freiras as lágrimas e o marinheiro há muito que tinha abandonado o cais levando a cruz – a corda ainda podia ser reutilizada - mas deixando lá Deus. Talvez fosse a pressa de chegar ao vazio que tinha pela frente que o impediu de perceber o que deixava para trás. Ou talvez fosse só porque, pelas leis dos homens,  Ele não cabia no saco das riscas azuis e brancas. E então, como se não O vissem nem sentissem por perto, todas as feiras puseram baton.

texto infantil // ponto de partida: a Emilia muda de escola, não gosta e depois descobre que afinal a mudança foi boa.



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A escola da Emilia tem um grande pátio com um campo que às vezes é de futebol, às vezes de basket e às vezes é só um sítio para conversar a apanhar sol. A escola da Emilia tem um grande muro onde todos os miúdos se sentam em cima e ficam a abanar os pés para verem as cores das meias uns dos outros ( e também quem pisou pastilha elástica). A escola da Emilia tem os seus melhores amigos: a Rosa que tem tranças ruivas e fala muito depressa, o Zé que tem aparelho nos dentes e tropeça nas palavras e a Maria que parece não ter nada de especial mas que vive na porta ao lado da Emília e acabam por andar sempre juntas porque a proximidade é vizinha da amizade. A escola da Emilia tem tudo o que ela imaginou numa escola. Ou melhor, tinha tudo porque já não é a escola da Emilia.
O pai da Emilia é engenheiro. Constrói pontes que atravessam os rios. Como naquela cidade o rio era curto e estreito e já era atravessado por 3 pontes - uma construída pelo bisavô da Emília, outra pelo avô e outra pelo pai - não havia mais espaço para mais pontes e o pai da Emília decidiu que deviam mudar de morada.
- Para onde? perguntou ela.
- Para uma cidade que tenha mais rios e que por isso precise de mais pontes - respondeu o pai.
A Emilia pensou, pensou e quando achou que tinha pensado tudo pensou ainda mais um bocado. E perguntou outra vez:
- Para onde?
- Tinha pensado numa ilha para fazer muitas pontes que a ligassem a outras ilhas e talvez a um continente. Mas depois tive uma ideia melhor e já sei para onde vamos.
- Para onde? voltou a perguntar a Emilia já a franzir a testa que estava quase sempre tapada pela sua franja com caracóis castanhos escuros.
- Vamos para Veneza - disse o pai enquanto se levantava do sofá.- Vamos para Veneza agora mesmo!
O pai agarrou numa mala e depois noutra e noutra e pôs tudo lá dentro. As malas da Emília continuavam vazias para quem quisesse ver. Só estavam cheias de dúvidas que não se viam mas que ela gritava para o quarto do pai:
- Sabes que eu não falo italiano?
- A Maria e a porta ao lado também vão para Veneza?
- E o Zé e a Rosa?
- Achas que lá também há sol no campo que às vezes é de futebol, às vezes de basket e às vezes é só um sítio para conversar?
- Se a mãe fosse viva também íamos viver para lá?
O pai apareceu no quarto da Emilia. Ela estava sentada no chão a olhar para as malas vazias, quase tão vazias quanto ela. O pai sentou-se no chão e disse:
- Vou responder a cada uma das tuas perguntas: Sei que não falas italiano e eu também não mas aprendemos num instante - sabemos dizer pizza e isso já é meio caminho andado para sermos felizes!
A Emilia piscou o olho a responder ao piscar de olho do pai, como fazia sempre, apesar de ainda não estar nada convencida. O pai continuou:
- A Maria e a sua porta ficam cá. Em Veneza encontrarás outras Marias e outras portas ao lado sem nunca te esqueceres desta. Mandas cartas, telefonas e ela até nos pode ir lá visitar! O mesmo acontece com o Zé e a Rosa.
A Emília estava muda de olhos muito abertos à espera que o pai continuasse. E o pai continuou:
- Tenho a certeza que vais ter dias de sol no campo de desporto da escola e dias de chuva também mas o mais importante é que vais ter amigos novos e é sempre bom ter mais e mais amigos, não é?
Agora a Emília teve de concordar. Imaginou que ia ver meias de cores nunca antes vistas penduradas nas pernas que abanavam num muro da escola. Faltava a resposta mais difícil à pergunta mais difícil.
- Se a tua mãe ainda fosse viva íamos os 3 porque as pontes mais importantes que eu posso construir são entre nós, para estarmos sempre juntos. Não posso fazer uma ponte até ao céu mas sei que a tua mãe lá de cima vem connosco até Veneza ou até bem mais longe.
A Emilia levantou-se, abraçou o pai e pôs toda a sua roupa e livros na mala. Hoje em dia fala tão bem italiano como português, tem vários amigos italianos e um namorado também, a Rosa, o Zé e a Maria estão lá a fazer Erasmus e o pai da Emília é responsável pela modernização das pontes da cidade.
Pelas pontes do pai, a Emília percebeu a importância de ligar lugares e pessoas, o aqui e o ali, o tu e o eu, e decidiu ser escritora. Era esta a sua maneira de ligar a realidade e o sonho, as palavras e os desenhos, as ideias e as pessoas. Porque cada um de nós constrói pontes à sua maneira, as pontes da Emilia são feitas de letras como estas.

texto infantil com os géneros todos: erótico, viagens, fantástico, policial, humor e experimental



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A Verónica sabia tudo sobre comboios. Sabia exactamente onde começavam as linhas que iam dar a fora daqui e a que horas partiam os comboios para muito longe. Todos os dias enchia e esvaziava a mochila como se criasse a companhia perfeita para partir. Depois olhava-se ao espelho e percebia que a mochila de inter-rail do seu irmão mais velho continuava a ser maior do que ela. E voltava a guardá-la na parte de cima do armário do corredor.
Aos 11 anos e meio, a Verónica sabia muito bem o que queria da vida. Ser turista. E se não podia sair do país nem da cidade era turista em Lisboa. Tirava fotografias junto à torre de belém, passava os sábados no autocarro vermelho que leva e traz turistas, comia croissants na Benard e fingia que bebia cafés na Brasileira.
Num dos seus dias de passeio encontrou um rapaz muito engraçado. Não era bonito nem contava anedotas mas era engraçado porque tinha comido os P e não conseguia fazê-los sair outra vez pela boca: nem com um susto, como a Verónica tentou várias vezes.
- Sabes o que é que eu almocei hoje? Bifes daquele animal cor de rosa que vive no meio da lama!
- Bifes de porco, disse a Verónica.
Ele agradeceu, tentou roubar o P da frase dela mas não conseguiu. Chamava-se Pedro mas como não podia dizer o P que ainda dava voltas na barriga dizia que era o João. A partir desse dia nunca mais se largaram e todos os fins de semana eram um par de turistas na sua própria cidade.
Um dia, quando passeavam perto do rio viram um casal de namorados. Eles estavam tão perto tão perto um do outro como eles nunca tinham visto. Estavam ainda mais juntos do que as pessoas no autocarro logo de manhã. E deviam ouvir mal porque falavam também com as bocas muito perto. Era o que a Verónica achava. Mas o João que era Pedro tinha outra ideia:
- Eles estão a namorar.
- Como é que sabes isso? perguntou a Verónica.
- Vamos segui-los - disse o João que era Pedro sem conseguir. - Se ele lhe der a mão, oferecer flores, usar o braço à volta daquilo que está em baixo do queixo e segura a cabeça e tiver os olhos a brilhar temos todas as coisas que os detectives têm quando querem ter a certeza de uma coisa.
- As pistas e as provas, disse a Verónica.
- Isso, disse o João que não sabia ser Pedro.
E começaram a segui-los. Pelo caminho viram pegadas gigantes nas paredes dos prédios mas isso não tinha interesse nenhum comparado com duas pessoas que se colavam e descolavam quando lhes apetecia. Quando o casal chegou à estação de comboios foi cada um para seu lado. Mas antes ela disse:
- Prometes pensar sempre em mim Paulo?
E ele respondeu:
- Prometo Palmira. Pedes o que não precisas de pedir, pequenina.
E o João que era Pedro corava. Achava que nunca ia conseguir fazer uma declaração de amor à Verónica porque isso parecia usar muitos Ps. Até que encontrou a frase certa:
- Queres namorar comigo?
A Verónica deu-lhe a mão e respondeu:
- Claro que sim.
Enquanto os dias passavam sonhavam com todos os lugares que iam visitar quando crescessem. Mas o João que era Pedro nunca se atreveu a dizer que queria muito ir à Polónia, ao Peru, à Polinésia ou à Patagónia. Mas não era preciso porque a Verónica sabia que sonhavam os dois com as mesmas coisas. Nos anos dele deu-lhe uma caixa cheia de Ps de papel e prometeu que quando fizessem a viagem era ela que ia à bilheteira e pedia o passe.


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A floresta acordou com o uivo a meio da noite.
Todos - a coruja e o coelho, a gazela e o tigre, a cobra e o rato, o macaco e o crocodilo -, com frio e medo, saíram para dizer: - Que barulho medonho! 
Logo a seguir, ouviram outro uivo, maior, mais alto, mais assustador, que o primeiro.
O elefante, sábio da floresta, veio devagar mas vinha preocupado: é o lobo.
Agarrou-se a coruja ao coelho, a gazela ao tigre, a cobra ao rato e o macaco ao crocodilo: - Que medo! O lobo quer comer-nos durante a noite! 
- Está lá longe, não se preocupem. Vou falar com ele logo de manhã.
-Ufa – suspiraram e voltaram a dormir.
Passaram dias e nuvens no céu lá em cima. Durante a Primavera saltaram e dançaram; nadaram e correram o Verão e na floresta, grande como do chão ao céu, nunca mais ouviu o uivo.
- Foi-se embora o lobo Elefante? - a mãe coelho queria saber.
- Está lá longe, não te preocupes.
O Verão parecia que ia ser para sempre até que, a meio da noite, ouviram o uivo de novo.
- Que medo...! - e, de novo, iam a sair para perguntar quando viram, no meio da floresta, o lobo.
Que fazes aqui? - perguntou o elefante
Venho fazer um aviso. - disse o lobo – Estão a começar a cair as folhas das árvores, perto do rio, do outro lado da floresta. Vai começar o Outono.
Mas ainda está tanto calor e as folhas estão verdes, temos o que comer por todo o lado. - o elefante não queria acreditar.
Mas é verdade o que te digo e devem começar a guardar para o Inverno. - e foi-se embora o lobo.
Os dias passaram depressa e o Outono apareceu mais depressa ainda. Na floresta as árvores já eram amarelas, castanhas e vermelhas. No Inverno ficou toda coberta de neve e ao rato e ao macaco faltava o jantar.
- Elefante! Precisamos de comer mas morremos se formos por aí, no meio da neve!
- Porque não pensaram nisso antes, enquanto era Verão?
- Não sabíamos que ia ser Inverno tão depressa! - chorava devagarinho o rato.
E o elefante lembrou-se: - O lobo avisou...
De todos, só o lobo conseguia andar depressa e sem se cansar, pela neve fria do Inverno. De todos, era o único que sabia andar de dia e de noite sem se perder. E foi por isso que o elefante lhe foi falar.
Dois dias depois, acordaram com um banquete no meio da floresta branca e fria. O lobo, parado e sem uivar, trouxera provisões para o resto do Inverno.
Primeiro parados e depois devagar, a coruja e o coelho, a gazela e o tigre, a cobra e o rato, o macaco e o crocodilo, saudaram o lobo pelo nome, agradecendo-lhe.
Desde esse Inverno que cada uivo que ouvem é um alivio e sorriem enquanto dormem, na floresta grande como do chão ao céu.







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    Na noite de seis de Fevereiro, morreu Antonino da Silva Trigueiro. Uma morte natural disse a autópsia.     Uma morte de surpresa disse metade da vila. Uma morte assassinada disse a Lurdes.
    No dia antes, Antonino passeava, saudável e com boa tez, pela alameda mais folgada da vila de Aguada de Baixo. Todos o saudavam – na tasca, na montra, na loja –, iam cães no seu encalço, felizes de um afago, enquanto ia a caminho da fazenda. Tinha a sua família, desde o bisavô, dezassete hectares de solo fecundo, cobiçado em Aguada de Baixo e em metade de Aguada de Cima.
    A jorna era a mesma todo o ano: de manhã antes do sol, o percurso pela alameda central da terra, os acenos e as saudações, até ao terreno. Passava lá o resto do tempo até escurecer. Da terra, antes do sustento e em vez da fortuna, apanhava dores de costas, unhas escuras e pele queimada. Mas era aquele o seu lugar melhor. O lugar onde era um homem melhor.
   Quando era hora de voltar, vinha pela alameda acima, com igual vontade. Vinha de volta para ela.
    Lurdes sabia ficar invisível: era uma mulher pequenina, cabia em lugares que mais ninguém arriscava; ás vezes ficava sossegada, parada e sem som, só a ouvir e a ver. Ás vezes e as vezes que ela queria, desaparecia. Regressava no lusco-fusco, para receber o seu homem, com a sopa aquecida na mesa cheia. Viviam de sol em sol, sem sobressaltos e no meio de acenos e saudações.
    A terra lavrada, de sol a sol, por aquele homem, nunca esteve à venda. Nunca o avô do avô, o avô ou ele, encontraram razão para a dar a troco de nada. Choveram, durante quase um século, propostas, umas honestas outras obscenas, para que se desamarrassem daquele pedaço de chão. Nem uma delas teve o sucesso que procurava.
    Em todas as ofertas, a do Joaquim da Vereda era mais uma – a mais esmagadora, repetida, ameaçadora e vigarista. Todos os dias a saudação do Joaquim era a mesma à ida e à volta: é hoje que te desfazes do teu caixão? Se calhar matou-o; jamais se soube.
     Secou o terreno depois que morreu em Fevereiro e sumiu, de vez e com ele, Lurdes.

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