Na noite de seis de Fevereiro, morreu Antonino da Silva Trigueiro. Uma morte natural disse a autópsia. Uma morte de surpresa disse metade da vila. Uma morte assassinada disse a Lurdes.
No dia antes, Antonino passeava, saudável e com boa tez, pela alameda mais folgada da vila de Aguada de Baixo. Todos o saudavam – na tasca, na montra, na loja –, iam cães no seu encalço, felizes de um afago, enquanto ia a caminho da fazenda. Tinha a sua família, desde o bisavô, dezassete hectares de solo fecundo, cobiçado em Aguada de Baixo e em metade de Aguada de Cima.
A jorna era a mesma todo o ano: de manhã antes do sol, o percurso pela alameda central da terra, os acenos e as saudações, até ao terreno. Passava lá o resto do tempo até escurecer. Da terra, antes do sustento e em vez da fortuna, apanhava dores de costas, unhas escuras e pele queimada. Mas era aquele o seu lugar melhor. O lugar onde era um homem melhor.
Quando era hora de voltar, vinha pela alameda acima, com igual vontade. Vinha de volta para ela.
Lurdes sabia ficar invisível: era uma mulher pequenina, cabia em lugares que mais ninguém arriscava; ás vezes ficava sossegada, parada e sem som, só a ouvir e a ver. Ás vezes e as vezes que ela queria, desaparecia. Regressava no lusco-fusco, para receber o seu homem, com a sopa aquecida na mesa cheia. Viviam de sol em sol, sem sobressaltos e no meio de acenos e saudações.
A terra lavrada, de sol a sol, por aquele homem, nunca esteve à venda. Nunca o avô do avô, o avô ou ele, encontraram razão para a dar a troco de nada. Choveram, durante quase um século, propostas, umas honestas outras obscenas, para que se desamarrassem daquele pedaço de chão. Nem uma delas teve o sucesso que procurava.
Em todas as ofertas, a do Joaquim da Vereda era mais uma – a mais esmagadora, repetida, ameaçadora e vigarista. Todos os dias a saudação do Joaquim era a mesma à ida e à volta: é hoje que te desfazes do teu caixão? Se calhar matou-o; jamais se soube.
Secou o terreno depois que morreu em Fevereiro e sumiu, de vez e com ele, Lurdes.
Dec
15
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experimental (nº de parágrafos = nº de letras primeiro nome; em cada um não usar a letra correspondente)
Publicado por Cristina Milho
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